Minha vida depois da morte
Diga-me, caro leitor, que culpa eu tenho de me senti livre depois da morte de meu esposo? Por acaso a morte não é um meio de libertação? Queiram me desculpar a minha forma de falar, sempre fui muito direta e verdadeira. Em minha defesa, se é que preciso de uma, eu não o matei e nunca desejei a sua morte.
O meu maior desejo sempre foi que ele mudasse, que se tornasse um pai e um esposo melhor. Não que ele fosse uma pessoa má, isso não. Não era também o melhor homem. Mesmo que a comunidade onde vivíamos o visse como um salvador, um homem benevolente, ele deixava muito a desejar. Principalmente em casa, pois tirava da boca dos filhos para dar aos outros.
Aos olhos de todos, essa era uma atitude de um quase santo. Ao meu ver não era bondade, mas uma crueldade sem tamanho. Como é que um pai deixa os filhos com fome para alimentar os outros? A bondade é para mim um ato que beneficia alguém sem prejudicar outras pessoas. Se ao fazer o bem a alguém eu acabo fazendo o mal a outras pessoas, não vejo bondade nisso.
Casei-me com ele ainda jovem, seu Zeca Braga, assim conhecido por todos. Tivemos muitos filhos e uma vida sofrida. Perdi-me tantas vezes nesse casamento que nem sei se ainda irei me encontrar um dia. Não me culpe, caro leitor, se a história não é linda, romântica, ou seja lá o que você espera. Estou aqui para contar os fatos, unicamente o que aconteceu. E não aconteceram muitas coisas boas.
Lembro-me que ao engravidar pela primeira vez, descobri que não era a vida que sempre havia sonhado para mim. Meu esposo chegava quase sempre embriagado em casa, brigava comigo, não tínhamos o que comer. Decidi voltar para casa de minha família, sem sucesso. Meu pai me obrigou a voltar para ele.
Eu não tinha saída, quer dizer, talvez tivesse. Mas em 1964, eu não tinha a visão que tenho hoje. Talvez porque naquele tempo ninguém tivesse a visão que tenho hoje, era outra cultura. E a fome reinava entre os meus familiares, fui de volta para casa do meu marido e jurei nunca mais buscar ajuda na casa do meu pai.
Fiquei com ele por muito tempo. Tivemos nove filhos, 3 homens e 6 mulheres. Com a casa cheia de criança fui trocada por outra mulher. Ele viveu com ela por quase seis meses e voltou. Eu o aceitei de volta, mas muitos dos meus filhos, revoltados com o ocorrido, foram embora.
E a pior dor da minha vida, senti nessa época. Não a dor de ser traída, isso para mim não fazia muita diferença. A dor que me dilacerou a alma foi saber que meu filho, com 17 anos, que morava em outro estado, havia morrido num acidente quando trafegava de bicicleta numa rodovia. Desejei a morte. Eu não queria mais viver. Como já podem ter percebido, meu desejo não se concretizou.
Tempos depois uma de minhas filhas se separou do esposo. E tentou tirar a vida. Não conseguiu, graças a Deus. Ela foi embora e deixou comigo suas duas filhas pequenas, isso se tornaria um ciclo mais tarde. Eu não sabia o que fazer com tanta tragédia em minha vida, não que criar as minhas netas fossem tragédias, de jeito nenhum.
O que não conseguia entender era porque tudo acontecia com minha família. Quando me dei conta essas duas netas já eram mulheres. E agora eu criava mais três netas, filhas de minha caçula. A mais nova sem ao menos saber quem era o pai.
Em meio a tanto caos, algo de bom aconteceu. Meu marido e eu conseguimos a aposentadoria, agora não iriamos mais passar necessidade. Que tolo pensar assim, como era tola. Meu marido havia se curado do vício em cigarros e álcool, mas um vício o acompanhava, o jogo.
Eu não tinha direito de sacar meu próprio dinheiro. Ele ia à cidade, pois continuávamos morando no meio do mato, receber as nossas aposentadorias, e muitas vezes perdia todo o dinheiro no jogo. E qual era a atitude dele? Ficava hospedado na casa de uma neta, na cidade, esperando o mês seguinte para receber o próximo pagamento. Enquanto eu me virava em casa com minhas netas. Fome, sim, uma rotina em minha vida.
Ele ainda era jovem, 64 anos. Mas era muito obeso e sofria de inúmeras problemas de saúde. Nesse dia, ele tinha voltado da cidade, e tinha trago as compras para o mês. Já de madrugada passou mal e me disse em seus últimos suspiros:
- Tereza, eu vou morrer.E morreu enquanto eu segurava uma vela acessa em sua mão. Um baque enorme na vida de toda a família, inclusive na minha vida. Tive que vender um pequeno terreno que tínhamos e fui morar na cidade. Com o dinheiro do terreno consegui comprar uma pequena casa, onde vivo até hoje, 17 anos depois de sua morte.
A minha vida melhorou consideravelmente com a morte dele. Não tenho mais ninguém me acordando às quatro horas da manhã para conversar ou fazer café. E o mais importante, não passo mais fome. O dinheiro que nas mãos dele nada rendia, agora sobra até para eu ajudar alguns filhos meus.
A minha vida depois de sua morte considero como um descanso que Deus me ofereceu em vida, recompensando-me os inúmeros sofrimentos que vivi. E por isso sou grata, não comemoro a morte do meu esposo, mas digo sim sem medo de que minha vida depois da morte dele melhorou consideravelmente.
Sei que agora com 81 anos e muitos problemas de saúde, a minha partida estar cada vez mais próxima. Mas se eu não estivesse viúva, eu já teria ido a muito mais tempo. Uma velha não aguentaria o que eu aquentei. Obrigado meu Deus, por me deixar experimentar um pouco de paz na minha vida. E vocês, caros leitores, pensem o que quiserem, já me disseram que depois que a gente escreve o texto não é mais da gente. Então façam com o texto de vocês o que achar melhor.