A Proparoxítona
- ... e aí, quando desci, já tava toda soada e...
- Você não é sino.
- Quê?
- O que “soa” é sino.
- E que importância tem isso agora?
- Você ficou suada. Com “u”.
- Por que você tá fazendo isso comigo?
- Por que você errou.
Aquela não fora a primeira correção de português pública de Alceu. A vítima, corada em frente à mira nociva da sala, iniciou o choro torto antes que terminasse de ler a redação das suas férias. O “suor” que a impedira de concluir a trama borrifava gotas nas dobras da sua testa. Alceu não esboçou arrependimento algum. Pelo contrário, continuou a rabiscar sua lista particular de proparoxítonas na mesa. “Léxico”. “Tântrico”. “Frívolo”. A intromissão no discurso de sua única amiga tornou seu aspecto ainda mais estranho aos olhos da professora. Em nome do bom convívio gramatical, perdera sua chance mais real de remover o lacre dos próprios lábios. “Tímido”. A última palavra riscada na mesa antes que a sirene gritasse.
- Vocês ouviram o sinal, meninos, podem ir pra casa.
- Eeeeeeeeeeeeeeeee!
- Menos você, Alceu.
- Algum problema, professora?
- O que há de errado com você?
- Como assim?
- Por que você corrige tanto as pessoas?
- Como professora você deveria saber.
- Não é disso que estou falando, Alceu. Tem algo estranho em você...
- Explique-se melhor.
- É sobre isso que estou dizendo! Você tem doze anos!
- Continuo sem entender. A senhora poderia ser mais clara?
- Tá bom. Quando você humilhou a Ana...
- Sim?
- Haviam muitos alunos na sala...
- Havia, professora! Havia!
Alceu desviou o corpo esquálido da professora e atravessou o corredor que o levaria à saída. No caminho, percebeu o rosto inchado de Ana através do vidro que esquadrinhava a porta da secretaria. Não esqueceria nunca a face da vergonha. Avermelhada, tremida, quente e submissa. Em momento algum pensou em se desculpar. O erro havia partido dela. Passou a língua nos lábios virgens e sumiu na multidão apertada. “Sádico”.
Ao chegar em casa, arremessou a mochila no primeiro canto vazio. Passou os olhos nas principais manchetes do jornal e virou um copo de água da torneira enquanto ouvia sua irmã gemer provocações ao telefone.
- Ah é? Humm... vou estar te ligando pra gente marcar, hein?
- Passe-me o telefone.
- Sai pra lá, Alceu! Deixa de ser estranho, garoto!
- Passe-me o telefone, por favor.
- Mas que...
Alceu arrancou o telefone das suas mãos e conversou durante trinta segundos com a paixão adolescente da irmã. Sem esboçar qualquer emoção, colocou o fone no gancho e comentou, sem olhar pra trás:
- Parabéns. Vocês se merecem.
- Seu moleque estranho! Era pra mim falar no telefone!
- Pra “eu” falar! Não se usa “mim” antes de infinitivo.
- Mas que...
- Ele disse que vocês iriam no cinema hoje à noite.
- Sério?
- Quando encontrá-lo diga que o correto é “ao” cinema.
- Ele me ama, Alceu!
- Que bom...
“Histérica”. Anotou a palavra à caneta na palma da mão esquerda para que adicionasse ao seu dicionário improvisado no dia seguinte. Trancou-se no quarto e começou a conjugar uma lista de verbos. Amo, amas, ama, amamos, amais, amam. Beijo, beijas, beija, beijamos, beijais, beijam. Lembrou de Ana. Perguntava-se como poderia ter saído algo tão ignorante daquela boca tão suave. Imaginou um marceneiro obeso declarando Camões. Com certeza seria menos incômodo.
Foi interrompido pelo toque do telefone. Talvez o namorado errático da irmã. Ao puxar o telefone do gancho já podia ouvir a conversa agitada entre as mães: a sua e a de Ana. Prendeu a respiração e acompanhou o choro desesperado que invadia a linha. Ana havia sido encontrada no fundo do lago que banhava o estacionamento da escola. Nos pulmões, alguns litros de água barrenta. Nos pés, uma gramática de nove quilos amarrada com a fita que, horas antes, adornara seu cabelo.
Antes que devolvesse o telefone ao gancho, Alceu cuspiu todo o ar do peito e sentiu as gengivas secarem. Ainda recuperando o fôlego, agarrou um lápis e riscou no branco da parede:
“Álibi”