A garota de bicicleta.

Uma menina caiu da bicicleta.

Ela transportava sacolas plásticas,

provavelmente saía com as compras do mercado

que fica há alguns metros do local,

algumas mercadorias saltaram das sacolas para fora

e foi o som de uma lata rolando na calçada

(dessas comuns de ervilha, milho verde, entre

outros alimentos em conserva); que me chamou a atenção.

Caíram no chão os sabonetes, biscoitos, saco de pão,

um pacote de macarrão e um de papel higiênico,

esses eram os itens aos quais podia-se distinguir

entre outras pequenezas,

e também tinha uma garrafa de refrigerante

que rolou para outra direção, quase chegando

na guia entre a calçada e a avenida.

Não vi o instante exato dessa queda, e sim o pós,

naquela distância onde nada poderia fazer,

de pé, dentro da lotação, do transporte público

parado no já familiarizado — Trânsito.

Um rapaz de feição grossa vêm se aproximando, ele passa

ao lado da menina com a bicicleta caída entre as pernas,

limpando os dois joelhos ao mesmo tempo,

talvez rasgados, machucados como as palmas das mãos

que em seguida ela assopra toda aflita, e a compra

ficara, pelo visto, em segundo plano...

Mas esse rapaz não se presta feito homem,

não resta a gentileza, a hombridade, a solidariedade, pois,

continua seu destino, afinal, nada lhe aconteceu

e nem tinha culpa pelo acidente daquela infeliz, somente

observava isento de qualquer emoção, ou reação,

sem fazer qualquer menção de acudi-la,

de prestar algum atendimento...

Direto ele prossegue, se duvidar, logo mais, estará

rindo por dentro, com ele mesmo, às gargalhadas.

O motorista do transporte engana a todos

quando, com o motor ligado, ameaça partir,

porém, sem se locomover (e nos locomover, junto),

e eu torço minimamente

para que isso não ocorra tão breve, meu expediente

já terminou, volto para casa pacientemente,

queria ver mais do que acontecia no exterior da lotação,

pelo mundo vívido, visto através do vidro.

É então que uma senhora, aparentando seus setenta anos

ou mais, primeiro acode a menina,

certificando-se que não havia machucados graves,

e tentando erguer a bicicleta sem muito êxito,

na certa lentidão de uma pessoa parcialmente debilitada;

se depara com a menina, e se importa com ela,

e eu não consigo ouvir o que diz, diz diretamente à menina,

que parece se agradar, ainda que sobrasse algumas caretas

ao esfregar novamente os joelhos, enquanto a senhora

recolhe os pacotes e as latas do chão,

repondo tudo, atenciosamente, em uma das sacolas,

incluindo o refrigerante na beirada.

A menina fica quieta, observando a senhora se doando,

agachando-se como gente velha, com dificuldade,

e ainda que seus movimentos sejam vagarosos (quase

lembrando os movimentos de uma tartaruga, sim),

lhe dava o mínimo de auxílio, espontaneamente...

A acidentada, que logo pareceu não saber o que fazer,

talvez reconhecendo o carinho, parecia meio envergonhada, certamente

aquilo lhe gerava o que chamamos de gratidão,

e essa doação, essa demonstração tão pequena de afeto

torna-se tão potente em determinados momentos,

que me arranca um suspiro, leve, bem leve,

eu daria o prêmio de melhor atitude do ano àquela senhora, se pudesse,

mesmo que a intenção se repita por aí, são cenas raras...

Só vendo para crer, e alguns passageiros

também presenciavam aquele gesto, dividindo

com as reclamações do trânsito e as do trabalho.

Contados mais alguns segundos (a mim, preciosos);

a menina, recomposta, coloca-se a pedalar

dando "tchau" com sua mão miúda,

equilibrando as sacolas plásticas

nos extremos do guidão da bicicleta,

indo finalmente para casa

depois desse contratempo, um tanto doloroso,

vai adiante com uma ferida e outra,

e certamente haveria de contar para os pais,

estes hão de lhe dar maiores cuidados.

A senhorinha retribuiu o aceno

e na vagareza sumiu do enquadro do vidro...

O transporte arranca para a alegria

dos passageiros, e minha, igualmente,

porque me fora dado o tempo que queria;

disparamos

acima daquelas rodas pesadas no asfalto morno,

ultrapassando a menina, ela agora sorria,

sim, além de não chorar, deu-se a permissão para sorrir.

Mas dentro de poucos metros, paramos novamente

com outro sinal vermelho apontado no semáforo,

acompanhado por mais reclamações explosivas, dessa gente

estressada, cansada, na pressa de retornarem

para o lugar de onde vieram, e a menina

nas suas pedaladas contorna uns pedestres

e termina virando para a rua à direita,

desaparecendo completamente...para eu nunca mais ver.

Acho que todos ficamos surpresos,

eu daqui, de longe; a menina com a senhora desconhecida;

a senhora com a descortesia do rapaz

que seguiu sem dar importância.

Ambas vão aprendendo, acostumando-se à queda sem lágrimas,

sem abaixar a cabeça, sem contar com a ajuda mais esperada...

Agora me pergunto: quem há de cuidar

daquela desconhecida?

Existiria alguém para assoprar qualquer das suas feridas?

Ao pensar no rapaz naquele rápido instante,

onde se deu a insignificância, notei a malevolência

do indivíduo, como deixou morrer o altruísmo.

Faço minha análise sobre a chance que ele perdeu

de ser especial ao menos uma vez...

Pergunto-me onde foi parar

o sentimento?

Por que ele deixou para trás?

[dsouza]

DeynoD
Enviado por DeynoD em 17/06/2021
Reeditado em 12/10/2021
Código do texto: T7281003
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