Dona Ana
Nunca soube nada da sua vida. Entrava amparada a uma bengala, sentava as gorduras numa cadeira de verga e, entre as saudações iniciais e o copo de água retirado da bilha, via surgir o cesto das peúgas para cerzir. Escolhia a meia, incluía nela o ovo de madeira, procurava o tom da linha, lambia e torcia a ponta do fio e, após duas ou três tentativas, conseguia ter tudo pronto para a tarefa. Ponteava com zelo o buraco, entrelaçava nele as linhas e depois tecia com a agulha, um jeito perfeito de aproveitar a peúga. A seguir procurava o par, virava tudo do avesso e deixava o enrolado das meias no tampo da mesa onde se apoiava. Terminava com o dia o seu trabalho, saía vagarosa e regressaria, sem data precisa, duas ou três semanas depois para recuperar as peúgas entretanto acumuladas. Pagavam-lhe com o almoço e o lanche e, vez por outra, com algumas moedas que ela arrecadava na carteira avantajada. Entre o trabalho, o secar das lágrimas e o ajeitar dos óculos havia, monossilábica, uma conversa. Dona Ana progredia nas palavras muito cautelosa e, em regra, a sua opinião era a de minha tia, senhora austera, a quem tinha conveniência em agradar. Soube, muito depois, que morava de favor em casa de um sobrinho. Tratavam-na com respeito mas eram gente humilde. O funeral pagou o Estado e, a acompanhar, não ia ninguém.