O TEAR DE DONA GUTA

-(ALBERTO VASCONCELOS)

De longe já dava para ouvir o bater dos pentes do velho tear de dona Guta, nossa vizinha, pessoa agradabilíssima, sorridente, de bem com a vida, embora por diversas vezes a vida tenha demonstrado que não gostava muito dela.

Chegada ao Brasil, fugindo das agruras do velho mundo, trouxe na bagagem além das poucas roupas a cultura de um povo nômade acostumado a aproveitar tudo o que a natureza oferece, sem deixar restos nem desperdício. O sustento do casal era garantido por uma horta, cuidada com muito zelo, pela criação de galinhas e ovelhas, vendas das peças de couro e madeira feitas pelo senhor Khan e pela produção de peças de lã da dona Guta.

O senhor Khan dizia com grande satisfação que o belo tear era a primeira peça de madeira que ele tinha feito logo depois de chegar ao Brasil. Grande. Pesadão. Feito de miolo de sucupira trabalhado com enxó, arco de pua e serrote de mão. Nenhum prego, nenhum parafuso nos encaixes perfeitos mantidos com cunhas e tarugos de madeira maciça. O tear ocupava a maior parte do pequeno galpão onde ficavam as arcas para guardar as peças prontas e os fios de lã.

Em cada primavera, dona Guta procedia a tosquia dos seus animais e percorria as fazendas de criação para comprar a quantidade necessária para atender às encomendas feitas geralmente de um ano para outro. Só depois que recebia a lã dos fornecedores é que ela procedia a seleção, limpeza, lavagem, tingimento, fiação e tecelagem conforme a tradição do seu povo.

Depois da secagem a lã era cardada e através da roca, reduzida a fios que eram montados no tear. Primeiro a urdidura que faria o comprimento da manta depois a trama com os fios coloridos enrolados nas muitas espulas que, uma vez encaixadas na lançadeira, iam a cada passada formando os desenhos diretamente da cabeça de dona Guta para o tear. Não havia desenho feito em papel, apenas algumas fotografias, já desbotadas, mostravam ancestrais do casal envolvidos em mantas semelhantes sendo açoitadas por lufadas de vento em paisagens desérticas.

No fundo do quintal tinha uma yurta, bem pequena, mas vistosa com cobertura e paredes forradas com restos de couros curtidos, lonas descartadas por caminhoneiros e sobras da lã que qualquer um descartaria como imprestável. Era nessa yurta que o casal se reunia para agradecer a Tangri, o deus-céu, a felicidade pela vida boa que tinham.

- (CLÉA MAGNANI)

Era um contraste gritante, o casal percebia que sua vida não poderia mais ser a mesma. Aquela mulher forte, de vida rude, na Natureza, agora se encontrava num outro país, uma outra cultura, menos espaço, não havia mais lugar para criar suas ovelhas, nem de quem comprar a lã tosquiada, para seus lindos trabalhos no velho tear.

Depois de terminar todo o estoque que guardava na yurta, precisou de mais lã, e com surpresa, soube que teria de comprá-las em novelos, o que até a pouparia, de todo o trabalho que sempre fez, com a lã de seus carneiros antes de fiar.

Quando foi a uma loja de lãs ficou deslumbrada com a diversificação das espessuras, cores e tipos de fios já prontos. Comprou muitas cores e espessuras diferentes, tecendo coisas maravilhosas com muito mais rapidez. As cores mais variadas permitiam combinações muito bonitas, e o trabalho rendia muito mais. Já estavam no Brasil havia quase trinta anos, e viviam das hortaliças que o senhor Khan cultivava no terreno bem cuidado com canteiros adubados mensalmente com o esterco de uma granja próxima, e de algumas peças de madeira que ele produzia e vendia numa feirinha de artesanato, que nos fins de semana era montada no larguinho da Matriz, onde os moradores negociavam suas produções como flores, ovos, mudas de árvores frutíferas, roupas e ali dona Guta vendia as peças que tecia.

Porém o clima do Brasil era muito diferente do de onde vieram. Lá as estações do ano bem definidas e invernos rigorosos, exigiam que mantas e xales fossem pesadões, feitos no tear manual, mas esses não tinham como competir com as roupas leves e fabricadas em série, com preços bastante acessíveis.

Então ela passou a vender na feirinha, também bolos e compotas que fazia com as diversas frutas do seu quintal e faziam muito sucesso, pois com as receitas trazidas de sua terra, e os condimentos daqui, ficavam verdadeiramente sublimes, e tinham ótima aceitação. Com isso, o uso do velho tear foi ficando em segundo plano. Ela até tentou levá-lo para a feirinha, como uma curiosidade, para que talvez assistindo ao vivo como eram confeccionadas suas peças, as pessoas valorizassem um pouco mais os seus trabalhos. Porém o tear era muito pesado, e impossível de ser transportado, até mesmo porque, por ser feito todo encaixado, sem pregos ou parafusos, corria o risco dele se desmontar.

Dona Guta não deixava de tecer suas peças, mas a venda estava ficando cada vez mais difícil.

E a situação ficou muito pior quando, naquela manhã, o senhor Khan acordou com uma dor no braço. Saiu para trabalhar e não conseguiu capinar, nem colher as hortaliças que necessitavam de maior esforço para serem arrancadas do solo, como os nabos e as cenouras. Voltou para a casa muito aborrecido, fazendo movimentos com o braço, como se o estivesse “obrigando a trabalhar", mas com o esforço, deu um gemido e caiu desmaiado no chão da sala. Dona Guta, que na cozinha preparava uma compota, ouviu o ruído da queda e veio correndo.

Ao vê-lo ali caído gritou por socorro. Vizinhos acorreram e o levaram, na Kombi de um deles, ao Hospital mais próximo, na cidade. Mas foi tarde demais. O senhor Khan tivera um infarto fulminante, e não sobreviveu. A morte do marido desestruturou totalmente dona Guta. Não tiveram filhos, ela não tinha nenhum parente aqui. Nem tinha ideia de como procurar algum conterrâneo.

Passou dois meses fechada em sua casa, pensando.

Os canteiros de Khan estavam agora cobertos de mato. Frutas apodrecidas cobriam o solo debaixo das árvores frutíferas, a yurta guardava as ferramentas com que ele lavrara a terra. O dinheiro que tinham foi em grande parte, gasto para pagar o sepultamento. Precisaria tecer mais algumas peças para vender e comprar alimentos, mas não tinha ânimo. Sentia-se só. Escreveu uma carta para a irmã que ainda vivia na Turquia e esta respondeu pedindo que ela voltasse para lá. Mas como comprar a passagem? Orgulhosa, jamais pediria para a irmã, e ficou ainda mais triste ao saber, que nada tinha de valor a não ser seus brincos e as alianças dela e dele, que ela retirou antes do sepultamento.

Dias depois foi até a cidade para avaliar e vender suas joias. Ao lado da joalheria havia uma loja de antiguidades, ela parou e ficou admirando as peças antigas da vitrine: fole, para abanar a lareira, louças de época, banquinhos de ébano recortados feitos à mão, jarros e bacias de porcelana para lavarem o rosto no quarto, e sobre uma cômoda entalhada a mão, junto a peças da famosa cerâmica iraniana decorada, com as características da técnica da cerâmica Iznik, dois tapetes que ela sabia serem feitos em tear manual.

Entrou na lojinha abarrotada de antiguidades e perguntou o preço de um dos tapetes.

Assustou-se com o valor pedido, e pensando alto, disse: - Eu faço um desses em 10 dias...- O dono da lojinha respondeu: - Ah, minha senhora, estes são tapetes feitos à mão em tear manual, que nem existem mais... – certo de que estava contando a maior novidade para ela, que disse – Sim... eu sei... sou filha de uma das tribos nômades da Mongólia e tenho um tear desses feito pelo meu marido.

De olhos arregalados o dono da loja já interessado, perguntou: – A senhora tem um tear manual feito à mão? Quanto quer por ele?

Dona Guta, ficou pensativa. Jamais pensaria em vender o seu tear. Mas se iria morar na Turquia, não poderia pagar para levá-lo.

Percebendo a dúvida dela, o dono da loja ofereceu um valor alto, mas disse que precisaria ver o estado da peça, e foram na caminhonete dele, até a sua casa. Quando viu o enorme tear, a madeira e a técnica usadas na sua confecção, dobrou o valor. Daria mais até para obter aquela relíquia. E ainda comprou todas as peças que ela tinha em estoque. Pediu ajuda para um vizinho dela para colocarem o pesado tear na carroceria, e voltaram para a loja onde ele a pagou em dinheiro.

Dona Guta não acreditava no que acontecera. Tinha dinheiro suficiente para a viagem e ainda sobrava muito. Vendeu o seu terreno para um dos seus vizinhos que sempre cobiçava a produção que o carinho com as plantas produzia. Graças ao tear que seu marido havia feito para ela, passara a vida tecendo os caminhos da sua vida nas tramas dos fios. E agora os fios de sua história eram trançados graças ao seu tear. Agradeceu a Tangri e duas semanas depois partiu de volta para o Velho Mundo.

Adquirido pelo governo do Estado, hoje o tear de dona Guta repousa no hall do salão nobre da Secretaria de Cultura como exemplo da criatividade do ser humano.

Cléa Magnani e ALBERTO VASCONCELOS
Enviado por Cléa Magnani em 13/06/2021
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