a longa vida do vento

O vento que se insinuava pela porta escancarada era aos poucos que tomava intimidade; trazia para dentro da casa uma leve neve de poeira.Algo nem branco e nem cinza.

É sujeira, riscou Elisabete com as pontas dos pés, um de cada vez, fazendo um traço insignificativo no chão da casa oca, no chão de madeira.E rangia, ainda rangia – a menina Elisabete calcou forte os pés, os pezinhos em sapatinhos quase de pano na cobertura falsa do esconderijo secreto, assim Elisabete arregalou bem os olhos grandes de gazela, e sentia – com o apoio do vento ousado – a umidade dos seus cachinhos vindo a nuca.

Respirou bem fundo e pela porta aberta Elisabete, hirta ao meio de um espaço oco, pode sentir um cheiro de alecrim vindo da tarde cinza-despedida.Seu nariz arrebitado é que sorriu, muda, paralisada com a sabedoria de uma ave ganhando o mundo:

_ Ah!

Mas outrora fora bonito naquelas janelas de madeira – agora trancadas m- aquelas cortinas balouçando sobre qualquer vento, enchendo a atmosfera da palidez de sua poeira.

Os moveis se riscavam com os dedos, faziam-se formas de coração, escrevia-se nomezinhos, alguns maiores cortavam-se no meio da poeira vencida.

Mas o chão, o chão era molhado e subia forte o cheiro de ufenol, o velho tanque cantando pela boca da bica de alumínio, o esfrega-esfrega das mãos da mulata, que ofegava como um touro farto.

Sim, era um concerto cotidiano de sons jamais pungentes de melancolia, todavia pleno de uma sublime felicidade:

O chiado da panela de pressão era a doida cigarra na amendoeira na calçada, as cortinas se ajustando nos trilhos, o erudito calmo das manhãs que perigavam nada acontecer; o periclitante era o alho prensado no socador Às mãos da mulata, o fritar na panela, o cheiro do feijão sem o gosto do cheiro.

A água que se bebe sem o gosto do barulho da labutavel que despenca da torneira.

Nenhum chiado humano, apenas que calor hoje! E se sabia, mas se espantava com a velocidade do tempo, sempre imaginário.Um trem correndo veloz no pensamento ingênuo.

Elisabete parecia prestes a dar um grito mudo com tanta voz falando junta.Como se ela vivesse mil vezes uma única vez.Sem saber por quem ou por quê.Certo dia descascara com a unha do polegar quase toda a cera de uma vela esquecida numa gaveta.

Agora – se o agora poderia estar acontecendo – nada valia a pena sem nada ter acontecido, um todo que se vivera como papeis que se queima.

O agora era o vento que trazia poeira, e ia invadindo os cantos mais limpos da velha mansarda.Aquelas tabuas velhas rangiam sob seus pés, seus pezinhos descalçou um dos sapatinhos de pano.Sempre se fazia cachos molhados nos seus cabelos pretos, as sardas iam perdendo sua cor.

Elisabete teve um ato de coragem depois de um longo tempo crescendo boquiaberta, deitou-se de barriga no chão, enchendo vestidinho branco da palidez da poeira.

Ah, e a tarde era tão seca e perdida!

Seus olhos miravam entre as frestas do assoalho em busca do secreto, de onde vinha o ranger? Que bocas gemiam sob seus pés? Um ventinho morno e árido na sua face que perdiam sardas.

Elisabete sabia o cheiro da poeira.

A mão mulata a ergueu paciente, resmungando baixinho.

Acho que:

_ Sua mãe me mata...

E um mundo silencioso de tantas palavras invadira o momento, e tudo foi espanado e parecia limpo até que se fosse chegando devagar com a mesma paciência apressada de todos os dias.

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Rodney Aragão, 06 de junho de 2007.