Chamas

Certo dia visitei meu irmão. Ele morava em um lugar do interior banhado em plantas e, de certa forma, sossego. Eu não procurava nem plantas nem sossego. Não por ser uma pessoa amante da urbe – o que nem de longe sou -, mas há algo de certamente perturbador em um lugar em que se sentir sozinho e depressivo pode ser muito mais tangente que se enfurnar num quarto ou sala assistindo filmes, depois do trabalho ou do estudo. Era isso o que fazíamos quando éramos crianças, aliás: assistir.

Nossa mãe era cinéfila. Antes mesmo de haver nome para isso. Ela sempre alugava DVDs por conta própria na locadora e nós devorámos longas-metragens como alguém que se empanturra de hambúrguer. Era assim no começo. Éramos crianças, afinal. Era muito mais interessante um filme de suspense que desenhos de animais cartunizados correndo como um trem bala e explodindo com dinamite sem morrer uma vez sequer. Mas também não recusávamos qualquer desenho animado que pudéssemos ver pela frente. Um episódio que fosse era como um bombom e um filme era como um bolo de chocolate. Até aí compartilhávamos os mesmos interesses de nossa mãe. Mas apesar de ser a origem, ela nunca nos forçou a assistir nada. Ela apenas colocava o DVD, e sentada no sofá observar a tela muito compenetrada como quem meditava sobre algo. Nós então nos interessávamos por aquilo tudo e simplesmente nos juntávamos a ela.

Até que ela enlouquecera. Isso foi depois de algum tempo trabalhando em uma loja de “grã-finos” (como se falava na época). Cansara, aparentemente, da rotina de ter de adular clientes esnobes e vaidosos, que olhavam para os “servos” como quem olha para uma cadeira. Um objeto com uma utilidade. Comprar caro para eles era uma parte de quem eles eram, quem não podia era, na cabeça deles, menos que eles, menos que humano, em alguns casos (O dinheiro, o ego, estresse e a facilidade sobem a cabeça de alguém como um escalador paciente, lento às vezes, rápido em outras), era o que eu imaginava na época, e assim tentava entender minha mãe, que anos depois de começar a trabalhar nessa tal loja e que era considerada por todos, diga-se de passagem, a mais sagaz e mais doce atendente do lugar, com sorrisos que não quebravam e nem amarelavam; e que, mesmo assim, nunca fora promovida sequer uma vez. Num de seus surtos queimara todas as suas roupas tocando fogo no armário e incendiando o quarto sem achar qualquer perigo nisso. Um vizinho de olhos pequenos e cabelo ensebado parara o fogo depois de quase derrubar a porta como num filme mesmo. E aproveitando o ensejo, tudo isso parecia enredo de filme! Aquele dia foi como viver um dia em um. E minha mãe? Hoje ela vive em um sítio muito afastado onde mora com um de seus irmãos e família, mas desde o incêndio, nunca mais parara de admirar o fogo tremulante. E por vezes, tivemos de impedir que ela se machucasse com seu passatempo de jogar coisas no fogo para alterar a cor da chama. Meu irmão uma vez disse, brincando, que nossa mãe era uma artista e sua arte merecia algum respeito, tanto quanto a de um pintor que escolhe a dedo e demoradamente qual tom usar, qual tinta selecionar, qual superfície, qual pincel... Até mesmo o tema da imagem! Em suma, ele foi punido por meu pai com uma surra e recomendação quase crítica de nunca mais falar aquilo para ninguém, principalmente para nossa mãe. Nessa mesma noite, eu acordei e fui ao banheiro com minha lanterna, quando passei pela sala onde meu pai dormia (pois que o quarto ficara inutilizado, é claro, depois do incêndio), e então pude ouvir barulhos estranhos que se assemelhavam com um choro de criança temerosa e angustiada de receber mais punição para parar de chorar. Eram só murmúrios e soluços reprimidos, no final – agora eu sei.

Meu irmão, acho que nunca se recuperou muito bem do que acontecera e até hoje vive sem nenhum armário perto dele. Todas as roupas ficam penduradas em cabides nas paredes. Mas ele não teve medo da mãe quando ela voltou para casa. Três meses de reclusão em um hospital mental não melhoraram muito sua consciência que vagava como um barco sem remo ou motor em um oceano de ondas infinitas, hora violentas, hora pacíficas. A razão de eu ir visita-lo foi que ele mesmo pediu isso. Ao que parece estava tendo problemas com a propriedade que administrava e seu proprietário que era meio teimoso e sumamente contrário às ideias dele quanto como poderia melhorar a casa. Relatara uma vez, meu irmão, que o dono fora contra a um projeto de fazer um tanque de armazenamento de água das chuvas (O que seria uma mão na roda quando o verão chegasse devido a inexistência de água encanada e saneamento básico na região). Ele não entrou em detalhes, mas, aparentemente, queria apenas conversar comigo e decidir se voltava à cidade ou não. Para mim não era nada mais que apenas um pequeno grito de socorro de alguém atormentado. Ele sempre fora assim e era assim que eu o conhecia.

Andando pelas ruas depois de descer da Topic, comecei a notar uma movimentação estranha. As pessoas corriam com cara que variava da alegria, nervosismo até a curiosidade. Isso sim para mim era estranho. Às tosses, cheguei à casa que meu irmão cuidava. Tudo estava mais escuro e sufocante com a fumaça que se expandia para cobrir-nos como uma roupa, um manto tóxico. O fogo lambia tudo o que podia da casa. Todos tentavam apagar o fogo, mas naquele interior não havia água encanada, vale lembrar) e muito menos bombeiros. Assim tudo fora destruído depois de algumas horas. Um corpo carbonizado fora encontrado. É horrível, mas desde então nunca mais vi meu irmão mais novo.

Andoru
Enviado por Andoru em 07/06/2021
Código do texto: T7273664
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