A Ponte, o Túnel e a Coroa
01.06.2021
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Envelhecer é se transformar em todos os sentidos. Nossos músculos ficam fracos, a pele enruga, os dentes amolecem, as bochechas, o nariz e as orelhas se alongam pela força da gravidade, nosso corpo se encurva, e assim por diante. É irreversível.
Minhas orelhas e nariz ainda se mantêm do mesmo tamanho, as bochechas estão se delineando com dois vincos fortes no rosto, mais parecendo um buldogue, e o papo crescendo como o de um peru. Mas, os dentes são o meu martírio. Eles me dão sustos inesperados e em situações constrangedoras.
Assim foi ao visitar em final de semana a um amigo antigo, do tempo em que trabalhávamos juntos em equipe de auditoria em contrato com a Petrobras, viajando por todo o Brasil.
Estava eu em São Paulo e ele mora em um belo condomínio em Embu Guaçu, convidando-me para passar o domingo em sua casa, com churrasco que faria especialmente para mim.
O trajeto para chegar até a sua casa adentrava pelas cidades de Itapecerica da Serra e Embu Guaçu, por estradas vicinais que nunca havia passado, e depois de mais de hora e meia de viagem, consegui chegar ao seu refugio, em local agradável, arborizado, um condomínio de casas em área de antiga fazenda. Delicioso o lugar.
Sua casa era grande, bem localizada no terreno, com a área social voltada para os fundos com a mata nativa integrada à construção. Tinha varanda com o pé direito alto, telhado madeirado e paredes em tijolo de barro aparente, muito aconchegante. Ali, estava a churrasqueira, a mesa com bancos em madeira bruta, o forno para pizza, o fogão à lenha como um perfeito caramanchão interiorano.
Sentamo-nos à mesa e a conversa se foi em lembranças daqueles ótimos tempos em que viajávamos juntos. Fazia alguns anos que não nos encontrávamos e muita historia aflorou, regada a queijo, azeitonas e claro, cerveja gelada que nos amimava. Sua esposa acompanhava nossos causos daquela época. Eu estava sozinho; a minha mulher, que ele conhecia, ficou em Florianópolis, uma pena, pois iria adora a casa, o local e a comida.
Meu amigo, com a sua silhueta arredondada, de altura mediana, óculos, de fala mansa, pausada e calma, sempre com um sorriso na face, mantinha a sua personalidade agregadora e meiga. Riamos das nossas aventuras nas viagens daqueles bons tempos.
O churrasco se efetivou, a carne estava ótima e comemos bem. Levei bombons de chocolate com recheio de creme de amêndoas para tomarmos com café, pois não se deve chegar de mãos abanando, como dizia a minha mãe, não é de bom tom.
Ao morder um dos bombons, senti que algo acontecera na minha boca. Tateei com a língua um dente restaurado com uma ponte fixa: ela caíra!
Procurei-a na boca e a senti junto com o bombom. O seu volume rolava e gradativamente foi se destacando. Não a engoli, ainda bem. Peguei-a na boca e comentei na mesa:
-Minha ponte caiu!
- O que? Sua ponte? – fala o meu amigo rindo.
-Sim olhe aqui ela – mostrando-a na mão rindo também.
-Caramba “Cera”, está com a boca mole é? – brinca.
-Pois é, está tudo mole, coisas da idade. Tempos atrás eu tirei um dente deixando um buraco que mais parece um túnel, e agora a ponte cai, a coisa esta feia na minha boca!
-E você é engenheiro civil, hein.
Nossas risadas alertaram a sua mulher que estava na sala, vindo saber da graça, e meu amigo lhe contou o fato. Rimos bastante. Deixei a minha ponte em um pedaço de guardanapo de papel sobre a mesa e a conversa continuou.
Chegou a hora de voltar para casa. Despedimo-nos, entrei no carro e sai pelas ruas do condomínio, quando senti com a língua o vão da ponte. Voltei correndo, pois poderia estar no lixo. Parei o carro no gramado e bati na porta da casa dele, que abriu espantado perguntando-me:
-Esqueceu alguma coisa?
-A minha ponte em cima da mesa – entrando eu afoito pela casa em direção à mesa na varanda. Estava lá, embrulhada no papel, intacta. Ele ria com a sua esposa e disse:
-Teve sorte, pois se ela tivesse começado a limpeza da bagunça, já estaria no lixo.
Na semana seguinte ao fato, estava passando pelos meus dentes o fio dental, quando no molar inferior direito, que possui uma bela coroa, saltou.
-Caramba, não é possível. Agora me cai a coroa, que fase – exclamei bravo.
Coloquei a coroa junto com a ponte em um pote de vitaminas vazio para levá-los à dentista em Florianópolis e recolocá-los.
Envelhecer é isso.
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