Conto das terças-feiras – Cinquenta anos depois
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 1º de junho de 2021
Carlos Alberto, 67 anos, sempre gostou de colecionar selos, cartões postais, cartas recebidas, fotos de lugares visitados etc. Para tudo ele tinha uma caixa onde guardava, separadamente, os elementos ou produtos de origens e significados diferentes, visitando-os pelo menos uma vez a cada mês. Na ocasião ficava parte do seu tempo recordando a procedência e o valor sentimental de cada objeto. Certa vez encontrou uma caixa entre as demais, sem identificação. Nunca mais ele havia visto essa caixa, achava até que ela havia sido jogada no lixo, desde o final do evento que o fizera separar das demais. Ao arrastá-la para próximo de si, sua tampa deslocou-se da caixa e uma peça de tecido caiu ao chão. Seu olhar direcionou-se no sentido desse objeto, verificando que se tratava de uma máscara, veio-lhe a lembrança de milhões de mortos, causadas por um único vírus. Seu rosto transfigurou-se, o corpo entrou em frenesi, tremia todo, para em seguida desmaiar.
Depois de alguns minutos desacordado, ao voltar a si, verificou que estava deitado no chão, ao lado da caixa sem identificação. Algumas máscaras, nas cores preta e branca, estavam ali estendidas, trazendo-lhe recordações amargas. Sua memória, que havia registrado todo o horror da pandemia da corona vírus dos anos de 2020, 2021 e 2022, estava ali, nítida, projetada em uma grande tela de televisão imaginária, a magoar seus sentimentos há muito adormecidos.
Os primeiros dias do aparecimento desse vírus, alertados por alguns e ignorados por muitos, passou a causar histeria. Os telejornais, dependendo do canal, afirmavam o avanço da doença, outros o negavam dizendo que era apenas uma gripezinha. As recomendações vindas do meio científico pediam que evitassem o contato entre pessoas, guardado distanciamento, uso de máscara, higiene das mãos e uso álcool em gel. Enquanto isso, no Brasil se comemorava o carnaval, festa profana, que arrebatava multidões em todas as cidades brasileiras, aumentando drasticamente o número de infectados.
Em sua família, os primeiros infectados foram seus pais. Sua mãe resistiu, mas o pai morreu. Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto, tentou levantar-se, mas lhe faltavam forças, foi obrigado a ficar mais um bom tempo naquela posição, de olhos fixos no teto branco de seu quarto. Outras cenas vieram à tona, hospitais em colapso, a curva de infectados e mortos aumentava a cada dia, era a primeira onda, diziam. As pessoas impedidas de ir e vir, fábricas, escolas, comércio e restaurantes impedidos de abrir e trabalhar, prejudicando sobremaneira a economia. Políticos, dependendo de sua identificação ideológica, se acusavam mutuamente, a fome aumentava o desespero idem, a criminalidade crescia rápido e o povo ficava extremamente assustado. Ao redor do planeta Terra, silenciosamente, o vírus atacava indiscriminadamente, a covid, doença provocada por ele, fazia cada vez mais vítimas. Novamente veio à mente a morte do pai, deixando desamparados cinco filhos e uma viúva. Sua mãe, amargando as sequelas deixadas pela covid, ficou impossibilitada de trabalhar por longos seis meses. Passaram até fome e os filhos foram empurrados a pedir esmola nos semáforos, pouco conseguindo, pois quase ninguém se atrevia a sair de casa. O efeito da pandemia perdurou por muito tempo no seio da família, levando, depois de dez anos, sua mãe a óbito.
Refeito do susto proporcionado pela caixinha sem identificação, Carlos Alberto levantou-se, juntou o conteúdo da caixa, levou-a até ao quintal de sua casa, fez uma fogueira e a queimou. Não aceitava de volta aquelas imagens, mesmo que em sua memória. Este ato simbolizava o episódio da fabulosa ave, Fênix, que após viver 300 anos, diz a lenda, se deixara arder em um braseiro para, em seguida, renascer das próprias cinzas.
Recordou, ainda, que sua família havia se recuperado, que ele fora o responsável pela continuação da criação dos irmãos, com resiliência, conseguira que todos estudassem, fazendo-os homens de bem e, pelo trabalho, de posses remediadas. Recorreu ao auxílio de um espelho e a luz refletida em seu rosto o fez esboçar um leve sorriso. Passou as mãos sobre seus cabelos brancos e deslizou os dedos sobre a face como se tentasse contar as rugas que o cansaço e o tempo sulcaram em seu rosto. Cada uma delas delineava as tristezas e alegrias que perpassara sua vida.
E pensou: — Venci a pandemia apesar das dificuldades da época e dos políticos, que fizeram das vidas perdidas uma batalha pessoal pelo poder. Quase todos eles estão mortos, eu ainda estou aqui, no ano de 2070, para contar uma história presenciada pela Humanidade, e que, de alguma maneira fez mudanças profundas nas fraquezas e virtudes dos seres humanos. O mundo, com a vacina, voltou à normalidade, temos, hoje, pessoas melhores e felizes.