A DISPUTA

- CLÉA MAGNANI

A vida dos três filhos de Rosália não tinha sido nada fácil. Órfãos de pai aos dez, oito e seis anos de idade, foram criados pela mãe, que começou a lavar roupas para fora. Ana deixou a escola e foi trabalhar de pajem para crianças da vizinhança. Os meninos, tiveram pouco estudo, trabalharam desde muito jovens, sob a “rédea curta” de Rosália, que sempre os ensinou o amor a Deus e a união da família. Artur, o mais jovem, era o mais introvertido; trabalhava de ajudante na quitanda do Seu Manoel desde os seus doze anos. Ali, descarregando as mercadorias do caminhãozinho e organizando tudo nas prateleiras, teve seus músculos e sua estatura desenvolvidos, tornando-o agora aos dezoito anos, um rapaz atraente, de sorriso cativante, embora tímido. Jair mais comunicativo, desde os catorze anos trabalhava como entregador de uma padaria do bairro. Ambos moravam só com a mãe, desde que Ana se casara. Artur continuava trabalhando na quitanda de Seu Manoel, que tinha uma filha, Marina, da mesma idade dele, e os dois davam-se muito bem. Nos finais de semana, iam à matinê no Cine Teatro São Pedro para assistirem aos filmes em série, que terminavam no momento de maior suspense, para continuarem no próximo domingo. Depois sentavam-se nos Largo Coração de Jesus, e conversavam, rindo muito. Era a única diversão do rapaz, que passava o resto da semana relembrando o riso cascateante de Marina, e daquela mecha do seu cabelo loiro que insistia em lhe encobrir os olhos verdes. Ah! Como ela era linda... Sem experiências anteriores, Artur não percebia que estava se apaixonando pela amiga. A vida traça planos... Jair, agora com vinte anos, ocupava o cargo de balconista na mesma padaria onde Marina ia buscar pão todos os dias. O rapaz sentia-se muito atraído por aquela jovem educada, que não negava um Bom Dia e um lindo sorriso para todos ao entrar no estabelecimento, e calculava o tempo para estar livre e atendê-la todas as manhãs. Naquele dia criou coragem, e com o coração acelerado, colocou na mão dela um bilhete, ao lhe entregar o pão.

- ARISTEU FATAL

“Estou interessado em você”. Assim que leu o bilhete de Jair, ao sair da padaria, Marina fechou os olhos, deu um sorriso e se mostrou satisfeita com aquilo que havia lido. Jamais pensara em querer assumir um namoro com o moço da padaria, mesmo porque desconhecia sua vida. Mas, tinha simpatia por ele. Lembrou-se de Artur, um bonito amigo, que demonstrava querer algo mais do que simples amizade. Todavia, não pensava em compromisso. Primeiro, porque seu projeto para o futuro, era ser médica, estando em vias de prestar vestibular, já no fim do curso preparatório para tanto. Depois, via Artur como um irmão, pois cresceram juntos, eis que ele, desde os quatorze anos, convivia diariamente com ela, na quitanda do pai. Enquanto isso, Jair decidiu sair do seu emprego, e muito relacionado com diversos clientes do comércio onde trabalhava, advogados, contadores, engenheiros, conseguiu uma colocação num escritório de uma construtora, como desenhista, pois, sempre teve muita facilidade nessa área. Inteligente, completou os cursos ginasial e científico em breve tempo, estando apto a ingressar num curso superior. Entrou no noturno de engenharia, obteve uma bolsa reduzindo a mensalidade, e com o que ganhava, pagava a faculdade. Artur, desolado pela indiferença de Marina, esteve na iminência de cair em depressão, e abusar de bebida alcoólica, só não acontecendo por obra de dona Rosália, enérgica e assumida. Começou a frequentar uma academia e devido ao seu porte físico, se especializou em levantamento de peso. Mas, o amor por Marina não deixara de existir. Ainda mantinha a esperança de conseguir seu intento. Por coincidência, a faculdade de Jair ficava no mesmo campus da faculdade de medicina de Marina. Certa ocasião, quando a estudante ficara até mais tarde, ela se encontrou com Jair. Foi grande a alegria de ambos ao se verem. Marina estranhou sua presença ali. Havendo certo tempo disponível, foram para a cantina da escola, onde ficaram um bom tempo, numa conversa muito agradável. O dois saíram do encontro muito satisfeitos e felizes.

- ALBERTO VASCONCELOS

Artur ficou mudo e sentiu-se traído quando Marina mostrou o bilhete que recebera. Depois vazio pelo distanciamento da amiga que, por causa dos estudos, isolou-se do mundo e raramente era vista. Os exercícios diários na academia não eram bastante para substituir a euforia que o álcool lhe proporcionava, e ele bebia com os clientes naquele cantinho do balcão onde se albergavam os velhos aposentados, sem ter algo melhor para fazer ao serem tangidos de casa por suas velhas e rabugentas esposas. As doses foram num crescendo ao ponto do senhor Manoel dizer-lhe, sem rodeios: ou você deixa de beber durante o expediente ou está fora. Eu não posso ter empregado que se junta à clientela para ficar embriagado. Ainda mais deprimido, Artur ao sair da quitanda foi para o bar que ficava na outra esquina. Em casa, embriagado, ameaçou bater na mãe, quando ela, mais uma vez, falou nas consequências do vício a que ele estava se entregando. Jair montara seu atelier de desenho no primeiro quarto e de lá ouviu a altercação até a ameaça. Armou-se com o estilete e foi dar um basta. Artur tentou esmurrar o irmão, mas seus socos se perderam no vazio e ele caiu sobre o velho sofá desgastado pelas garras da gata Sofia, que saiu em desabalada carreira. – Por sua causa eu perdi a minha namorada... (falou Artur em tom de mágoa); Rosália olhou, alternadamente, para os filhos sem entender a razão daquela acusação. Na manhã seguinte, a severa mãe, depois de conhecer toda a história, disse taxativa: Vocês acreditam que uma moça bem-nascida como Marina iria se interessar por pés rapados como vocês? Um empregado do pai dela. O outro, agregado em construtora, faz desenhos por encomenda, sem nenhuma garantia. Ela daqui a pouco será médica. Vocês acham que ela teria algum orgulho em apresentar um de vocês como marido? E não diga que você vai ser engenheiro, porque construtoras podem ir à falência de uma hora para outra. Cresçam. Planejem a vida com um passo de cada vez. Talvez, no futuro, quando tiverem instrução e dinheiro, ela se interesse por um de vocês. Agora vão trabalhar, porque essa disputa não leva a nada.

- CLÉA MAGNANI

Depois daquela noite os dois irmãos nunca mais se falaram, a não ser quando Rosália faleceu, para saberem com quanto precisariam contribuir para pagarem o sepultamento da mãe. Ana, ao notar a situação, após o sepultamento chamou os dois para uma conversa. As acusações mútuas dificultavam qualquer entendimento. Decidiram que sairiam da casa alugada, e iriam morar em pensões. Não adiantaram os conselhos e apelos da irmã tentando fazê-los ver que Rosália não teria paz com a inimizade entre seus filhos. Separaram-se definitivamente. Marina, casou-se um colega da Faculdade, e nunca mais souberam dela. Artur trabalhou mais algum tempo na quitanda, mas o vício da bebida fez com que perdesse o emprego. Começou a trabalhar recolhendo ferro-velho, pelas ruas do bairro. O que ganhava, não era suficiente para pagar a pensão, então passou a morar no grande quintal onde se instalava o depósito de ferro velho de um espanhol, ficando como zelador e especialista em reconhecer os metais mais valiosos, o que agradava muito o seu patrão. Jair, continuou por algum tempo, vendendo seus desenhos de paisagismo para projetos dos edifícios, que agora tinham cada vez menos jardins. Deixou os desenhos e foi tomar conta de uma banca de jornais na Rua Santa Ifigênia, próximo à pensão onde morava. Ali fez amigos de todos os tipos num salão de bilhar ao lado da pensão. Não se conformava com a reviravolta que sua vida dera. Acusava Artur pela sua infelicidade, bebia. E fumava sem parar, minando seu organismo. Ana faleceu sem conseguir reunir os irmãos que nunca se perdoaram. Uma noite, ao sair do salão de bilhar embriagado Jair caiu e passou a noite desmaiado na calçada. Socorrido pela manhã foi levado para a Santa Casa onde deu o endereço de Artur, que veio buscá-lo e o levou para morar com ele no ferro-velho. Cuidou do irmão até que dois meses depois, Jair se levantou pela manhã, chamou Artur e caiu. Teve um derrame cerebral, morrendo nos braços do irmão. Haviam se passado 40 anos. Nunca namoraram nem tocaram no nome de Marina. A disputa nunca existiu, mas nunca terminou...