CHAMEM O SÍNDICO.
O celular de Eutrópio tocou. -"Não atenda, homem de Deus!" Ele ignorou a ordem da esposa e atendeu. -"Sim. Eutrópio, o síndico. Dona Marluce, não precisa. Certo, dona Marluce. Vamos analisar as câmeras das calçadas também. A senhora tem razão. Não vou recolher merda de cachorro na calçada do condomínio. Sou síndico e não faxineiro. Cada morador, dono de pet, deve recolher o cocô dos seus bichinhos. Não precisa mandar foto no grupo do condomínio! Estou almoçando e a senhora tem que respeitar, caraca! Dona Marluce? Desligou." A mulher dele sorriu. -"Eu avisei pra vc não se candidatar a síndico mas.... agora aguenta Eutrópio! Vai infartar qualquer hora dessas." O homem estava vermelho de raiva. -"A idiota mandou as fotos! Eu mereço. Motorista, garçom, trabalham oito horas e só. Garçom só serve nas oito horas, motorista dirige só nas suas horas mas síndico tem que ser síndico vinte e quatro horas!" O casal saiu do restaurante. Tempo depois, a portaria do condomínio Space Royal, em Santo André. A guarita principal. O porteiro acenando. -"Seu Eutrópio, a polícia está no 706, bloco X. A dona Perpétua surtou e agrediu o Messias, aquele que toca saxofone de madrugada. O homem agora é pentecostal e quer tocar na orquestra da igreja." Eutrópio se despediu da esposa. -"Vamos lá, Aderbal. Alguém tem que colocar ordem no parquinho." A esposa seguiu para casa. Ele sentiu o forte cheiro de álcool. -"Faz tempo que seu tricolor não era campeão mas não precisava vir trabalhar bêbado, Aderbal. Olha a advertência." Um rapaz se aproximou. -"Síndico vacilão. Fechou a piscina sem comunicação aos moradores porque, Zé ruela?" Eutrópio se assustou. Respirou fundo. -"Abaixe a voz, Renato. Fixei avisos, uma semana antes, você não leu. Tenho que seguir protocolos e leis municipais ou o condomínio é multado. Não sou ditador nem irresponsável com vidas humanas." O moço partiu pra cima do síndico. O porteiro se meteu entre eles. -"Polícia. Policial, venha aqui. Calma, gente." O rapaz se foi, ao ver a viatura policial mas saiu soltando palavrões. Uma mulher se aproximou. -"Seu Eutrópio. Essa internet da Boss é boa? Passa o cabo por aqui no bairro?" Ele não entendeu nada. -" Sou síndico mas não sou obrigado a saber de tudo. Pesquisa bem, dona Lurdes. Vai pela maioria, não tem erro." Um homem se aproximou deles, gesticulando. -"Seu síndico! Eurípedes, Eutrópio, não? Pois é, a louca do andar de cima do meu apartamento, aquela maldita não me deixa dormir. É uma bateção de coisa, cadeira arrastando, eu fico maluco. Dê um jeito ou vou dar uns tiros nela." O homem tremia. -"Calma, seu Geraldo. Eu vou falar com sua vizinha de cima. Pra tudo há solução. Às vezes uma boa conversa resolve." Eutrópio e Aderbal chegaram ao bloco X. A mulher era contida por um policial enquanto o outro preenchia o boletim. O saxofonista com o braço arranhado. -"Toda a semana a polícia vem aqui. Violência feminina e agora isso, Aderbal." O celular não parava de tocar. -"É o subsíndico. Estão usando martelete no bloco B. Deve ser no apartamento do doutor Leôncio, o advogado machão. Esses moradores não cumprem regras." Eutrópio selou a paz momentânea entre a mulher e o vizinho saxofonista. A polícia foi embora. Aderbal voltou a portaria. Eutrópio se dirigia ao bloco B quando foi interpelado por uma mulher. -"O senhor é um inútil, não sei porque o elegemos pois tem ratos no bloco H. Ratos enormes." Eutrópio respirou fundo e contou até dez. -"Há um enorme bueiro da prefeitura, bem em frente ao seu bloco. É normal que os ratos entrem primeiro no seu bloco, minha senhora. Vou tomar providências." A mulher não gostou da resposta e saiu pisando duro e fungando. -" O senhor deveria dar uma dura nos vigias da noite pois falam alto e atrapalham o nosso sono. Esses cães latem a noite toda, devia ser proibido ter bichos no condomínio." Outra mulher o bloqueou, colocando o dedo em riste. -" Seu Eutrópio, meu gás está rosa, estranho. Essa mudança de empresa de gás encantado não deu certo!" O homem segurou o riso. -"A senhora quer dizer gás encanado. Está rosa por causa do Outubro rosa, mês de prevenção do câncer de mama. É normal." A mulher não o deixava ir -" Minha filha queria ver se pode passar o ônibus da cidade aqui no condomínio? Coitada, anda sete quadras até o ponto. O meu banheiro está com mofo, o piso soltando. Há fantasmas no meu bloco, sabia? Um velho e uma criança, ficam rindo de mim." Eutrópio se livrou dela. -" Certo. Eu vou dar uma olhada, pode deixar. Fantasma não faz mal, os vivos sim. Com licença." Ele entrou no elevador. O barulho de obras e paredes sendo quebradas. A porta semi aberta. O rádio com volume alto. -"Por favor, desligue o som." Pediu ele ao pedreiro, cheio de pó. -"Aqui não é discoteca. Estão fora do horário permitido pra obras. Martelete é proibido pois abala as fundações, serão multados." O pedreiro sorriu. -"O doutor Leôncio será multado. Ele e advogado. Vamos parar já, senhor mas venha ver uma coisa." O síndico seguiu o pedreiro. Eutrópio quase infartou. -"Aquilo atrapalha nosso serviço." No bloco ao lado, uma moça lavava roupas vestida só de lingerie. -"Ela está sem máscara, seu síndico. Vai lá e multa a belezura." Eutrópio saiu dali. -"Não preciso que me ensine meu trabalho. Por favor, parem a obra." Ele pegou um dos elevadores. Duas mulheres entraram. -"Olha, Luzia, esse é o síndico. Essa porta está fechando muito lenta! O senhor tem que consertar." O síndico respirou fundo. -"Alguns reclamam que fecha rápido. Não posso atender a todos ou ficarei louco. Por causa dos idosos a porta fecha devagar. Não tarda e as senhoras vão gostar que a porta demora pra fechar. Boa tarde." As mulheres se foram.-"Matilde, acho que ele nos chamou de velhas!" O síndico chegou ao apartamento de Geraldo. -"Entre, por favor. Vai ouvir a barulheira!" O morador abaixou o som da tevê. -"Minha tevê tem que ficar no volume máximo por causa do barulho de cima." O som de cadeira sendo arrastada. -"Escutou? Parece de propósito. Não aguento!" O síndico o chamou. -"Vamos subir e falar com a moradora." Eles subiram as escadas. -"Passe uma multa salgada, meu caro." Eles chegaram ao apartamento. Uma mulher abriu a porta. -"Boa tarde. Sou o síndico e esse senhor, morador do andar debaixo do seu, está sendo importunado por barulhos vindos daqui." A mulher se manteve calma. -"Isso mesmo. A senhora vai levar uma multa pra aprender a respeitar e fazer silêncio." Disse Geraldo, irado. Um rapaz surgiu, atrás dela, com duas crianças. -"Me desculpem. Eles são barulhentas às vezes." Disse a mulher, pegando uma das crianças no colo. -"Ricardinho e Kaike são gêmeos e autistas, não ficam quietos. O tapete emborrachado até abafa um pouco o barulho deles. Meu marido, agora desempregado, me ajuda com eles pois operei da coluna. Eu trabalho em home office. A escola deles está fechada, vocês entendem. Aceitamos a multa e prometemos não incomodar." O síndico engoliu em seco. Uma das crianças abraçou a perna de Geraldo, querendo brincar. O homem, antes irado, sorriu. -"Eu retiro a queixa, não precisa multar. Eu não sabia que eram especiais e além do mais, são umas graças." O síndico concordou. -"Resolvido, então. Nada que uma boa conversa não resolva. Obrigado, minha senhora." O síndico se foi, acompanhado de Geraldo. -"A gente reclama e xinga sem saber dos problemas dos outros. Eu ganhei uma cesta básica da minha igreja e vou doar pra eles. Tenho alguns brinquedos guardados e acho que aquelas crianças vão gostar de ganhá-los." O síndico o cumprimentou. -"Que bom saber disso. Não é difícil ter boa convivência. Até mais, seu Geraldo." Eutrópio se encontrou com o subsíndico. -"Seu Eutrópio, chegaram multas da prefeitura, sobre a posição das lixeiras. O seu Reinaldo, do 408, bloco F, disse que vai pegar o senhor de pau por causa da multa de som alto." Eutrópio pegou os envelopes da prefeitura. -"Arrancar os cabelos não vai adiantar. O rei da cocada preta quer ouvir funk a meia noite, no maior volume? Vai levar multa salgada pra aprender. A dona Suzana não aprende e está de lingerie na área de serviço de novo. Vai levar multa." O subsíndico começou a filmar os prédios do condomínio. -"Melhor filmar a bonita antes de multar pois ela alega que é a vizinha debaixo que fica pelada." O síndico sorriu. -"Ah, tá. A dona Cótinha, de oitenta e sete anos?? Já demos a advertência verbal, reincidente leva multa." Quatro crianças passaram correndo por eles. -"Molecada. Não podem correr nas áreas de convivência!" Gritou o síndico. Uma mulher se aproximou. -"O senhor disse macacada? Chamou meus sobrinhos de macacos?" Eutrópio estava irritado. -"Molecada, não macacada, dona Wanda. A área da piscina está liberada mas apenas a moradores e seus sobrinhos não moram aqui. Está no regulamento, que a maioria não lê e não respeita, que é proibido correr no condomínio." Algumas pessoas se aproximaram. A mulher começou a chorar. Um dos moradores ligou pra polícia. O subsíndico mostrou o vídeo. -"Ouçam. O senhor Eutrópio fala molecada, nitidamente. Quem quiser processar, vai em frente. Vai perder e terá que pagar por injúria, calúnia, difamação, além dos honorários advocatícios." As pessoas foram saindo da muvuca. -"Se alguma criança cair e machucar, sou culpado. Vão processar o condomínio." A mulher reuniu os sobrinhos e foi embora. -"Interessante que ninguém elogia, poucos comparecem às assembléias mas nas redes sociais são valentes. Quem é inadimplente é quem mais reclama! Tomara passe logo a pandemia pois sem as aulas presenciais o condomínio está cheio de crianças, os pais sem paciência." O subsíndico o consolou. -"Mudou uma psiquiatra no bloco J. Como síndico, talvez ganhe um desconto nas sessões! Reclamam da segurança mas deixam o portão escancarado, dando sopa ao ladrão. O chefe Fogaça é síndico também. Quero ver os moradores fazerem barraco e quebrarem o pau com ele!!!" Eutrópio sorriu. -"Verdade. Me lembro do seu Jaime, do 204. Ele queria reservar a churrasqueira boa dias determinados por ele. Deu murros na minha mesa e depois voltou armado. Morreu um mês depois. A pandemia e a quarentena potencializou os transtornos e os transtornados. Síndico é igual tesoureiro de igreja, se compra carro novo é porquê tá levando um por fora!" Os dois riram. O porteiro se aproximou. -"Seu Eutrópio, o bloco E tá sem água, de novo. A mulherada tá brava com o senhor." O sindico pegou o celular. -"Vou ligar no departamento de água." O porteiro riu. -"Não querendo corrigir o senhor mas já corrigindo, hoje é domingo e o departamento de água é fechado ou seja, estamos na roça!" O síndico verificou o celular. -"Puxa. Nem me toquei que hoje é domingo. Vou dar uma descansada, tomar uma gelada que eu mereço." Ao chegar no seu apartamento a surpresa. Umas bolinhas pretas em frente a a sua porta. -"Mas... isso é cocô de cachorro? Não acredito, bem na minha porta é demais pra cabeça!" Um panelaço no bloco ao lado. -"Panelaço contra o Bolsonaro. É o louco do Dirceu, do 708. Petista roxo. Quando começar o Fantástico ele faz silêncio." Disse o síndico a esposa. Onze da noite. O celular do síndico, quase dormindo, no silencioso. Batidas na porta. Eutrópio se levantou. -"Deve ter pego fogo na piscina." Um homem o abraçou. -"Seu Eutrópio, tem um cara com a Zilu. Um cara no meu apartamento. Não me deixou entrar." O homem chorava. A esposa do síndico despertou. -"Machado?! O apartamento é seu, homem. Sua esposa não pode fazer isso." Eutrópio olhou para a esposa. -"Ele dorme aqui, no sofá. Amanhã é outro dia e as coisas se resolvem, querida. Vamos nos acalmar. Eu espero." Uma hora depois. O subsíndico e o vigia na porta do síndico. -" Me deixem dormir. Preciso de férias, urgente. O que querem?!" O subsíndico ria. -"Aquela moça que a gente sondava há meses, está na esquina." Eutrópio esfregou as mãos. -"Eita, ferro. Falem baixo pra mulher não escutar. Aquela que furou os pneus do meu carro e colou cartazes me xingando??? Vamos pegar a vagabunda." Ele fechou o apartamento. Os três desceram as escadas. -"A câmera dezoito capturou a sujeita. Parece que tá fazendo ponto na esquina da rua Trinta. Está sim." Disse o vigia. Eles passaram pela portaria. As ruas quase desertas. Alguns carros. Uma moça alta, loira, esguia, com um cigarro na mão. O vestido rosa curtíssimo. Eutrópio não se conteve e gritou. -"Te pegamos, vadia. Vamos chamar a polícia." A moça se virou. Atrás da maquiagem e dos longos cílios, o síndico a reconheceu. -"Mamma mia. Doutor Leôncio? Preciso mesmo de férias, de uma psiquiatra."
FIM