Nos tempos do machismo

Agora que comportamentos machistas são amplamente discutidos na sociedade entre outros com movimentos deflagradores como o “me too” por exemplo, me veio a mente uma passagem da vida da minha finada tia que ilustra os estragos que o machismo, a misoginia e todo tipo de intolerância traz à vida das pessoas.

Ah, antes de contar, um adendo, uma sugestão de filme, especificamente de um filme nacional, “A vida invisível” de Karim Aïnouz filme indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua não inglesa, eu me lembro que quando estava assistindo ao filme no cinema, imediatamente lembrei-me da minha tia, naquela época ainda viva e fiquei pensando, como o machismo destruiu com a vida e com os sonhos de tantas mulheres no passado, se as mulheres celebram algumas conquistas hoje, saibam as coisas eram muito piores no passado.

Vamos à história então:

Na década de 50 no extremo norte de Minas Gerais, cidades como conhecemos hoje eram quase que inexistentes, eram quando muito um mal-ajambrado de casas em volta de uma igrejinha. Foi numa dessas que minha mãe se casou no ano de 1953, ela lembra que assim que chegou na casinha nova, depois do casamento, ela riscou num canto da parede de adobe o ano de 1953. Enquanto o ano de 1953 marcava uma nova vida pra minha mãe, aquele ano pra minha tia (irmã da minha mãe) foi fatídico, porque foi também o ano em que ela se casou, mas não só isso, minha mãe e minha tia se casaram ambas no mesmo dia, na mesma igreja, ambas com dois irmãos da cidade vizinha de Montezuma, incrível não? Eu tenho certeza que um casamento desses seria como se tivesse saído da cena de um filme romântico de época, deve ter sido algo muito bonito de se ver, já imaginou?

Só que o desenrolar disso tudo... Que infelicidade!

Noite de núpcias!

Na noite de núpcias meu tio, no alto de toda a sua sabedoria, coube a ele dar o seu veredicto, o seu parecer de homem vivido e experiente nas coisas da vida, ele não havia encontrado sinal de virgindade na minha tia.

Fiquei tentando imaginar o diálogo que houve entre eles:

-senti que você tava gemendo, eu ouvi, você tentou tapar a boca mas eu percebi, você é experiente, cê já fez isso com outros.

-Eu nunca fiz isso, acredite em mim, você estava me fazendo feliz! Tava gostoso, só isso! O que você queria que eu fizesse? Chorasse?

-Isso não é coisa de mulher direita sentir, é coisa de mulher da vida!

-E o que você sabe disso? Já se deitou com essas mulheres?

-Que pergunta besta, é claro que sim, eu sou homem, essas mulheres existem pra isso!...

-Por que elas podem sentir prazer e eu não? Eu não entendo isso!

-Porque é coisa de mulher vagabunda, imoral...

-Essas mulheres não tem o mesmo corpo que eu?

-Isso não importa e ademais...

-E ademais o quê?

-Tem outra coisa que é muito mais grave, eu percebi que não saiu sangue, nenhuma gota, o lençol tá limpo que só...Como explica isso Maria?

-Eu não sei explicar, talvez eu não sangre, eu não sei, eu juro, sou virgem, não me devolva, vou ser uma vergonha pra minha família...

-Pensasse nisso antes de se deitar com outro macho...Não posso ficar com uma mulher que foi desencabaçada por outro, eu não carrego essa vergonha.

-Mas eu sou inocente, posso te assegurar!

-Não acredito em você!

Será que foi algo assim?

Provavelmente.

No outro dia bem cedinho ele colocou ela na garupa do cavalo e foi até a casa do meu avô.

-Seu Pedro, vim devolver sua filha, não vi sinal dela ser mais moça, eu não a quero, pode ficar com ela!!!

Meu avô nem contestou, se um homem falou que sua filha havia sido desonrada por outro, ele tinha que ficar bem quietinho.

E assim foi!

Todos os irmãos e irmãs se casaram e minha tia ficou literalmente pra titia. Os anos se passaram, na época do casamento fracassado ela não tinha mais do que 18 anos, depois os anos foram se amontoando e ela viu a duras penas que ela nunca mais poderia formar uma família que ela pudesse dizer sua.

Meu avô morreu, na casa na roça, ficou só a minha avó e minha tia, duas mulheres naquele mundão, não era apropriado, sendo assim um dos meus tios vendeu tudo e trouxe a mãe pra junto de si, quanto a minha tia coitada, sem casamento, sem nada pra si, ficou ora morando com um irmão, ora com outra irmã.

Demorou muito, mas ela se casou novamente, agora com um viúvo, mas isso ela já tinha passado dos 40 anos, ainda assim ajudou a criar os filhos dele, não demorou muito ele faleceu. E de novo ela ficou só.

Quando eu era moleque, ela vinha e passava uma temporada na nossa casa, só quando eu era adolescente é que eu fui saber da "história escandalosa” e por todos escondida. Sempre pensava, minha tia que safada, hein, achou que ia dar o golpe no meu tio, mas o bicho era experiente, vivido, minha tia sobrou nessa, se não tivesse aprontado...E nem pensava mais nada.

Demorou muito pra minha cabeça mudar, acho que um desses livros que marcam a vida da gente e dá aquele estalo, foi “Dom Casmurro” do Machado de Assis, sempre na minha conta Capitu traía Bentinho, só na segunda lida, e mais maduro, eu pensei, cara o Bentinho foi contaminado não só pelo ciúme mas também pelo machismo terrivelmente impregnado na sociedade, afinal de contas o que a gente vê no livro é apenas a versão de um homem ciumento e sem dúvidas machista!

Aquela passagem mudou a vida dela pra sempre e de certa forma também a nossa porque no final da sua vida já com quase 80 anos de idade ela veio pra São Paulo, sem filhos naturais, ela veio passar alguns meses conosco, esses meses se transformaram em anos, pois descobrimos que ela estava com um câncer nos seios, foi uma imensa dificuldade para todos nós cuidarmos dela, mas afinal de contas ela fez cirurgia e conseguiu deter o avanço do câncer, lembro até hoje, todos os meses durante pelo menos uns 5 anos eu ia buscar remédio contra o câncer pra ela no hospital São Paulo, além da nossa preocupação com o risco do câncer em voltar, ela foi acometida pelo mal de Alzheimer, ela não tinha mais ninguém no mundo além de nós, o enteado dela em Minas pouco ou quase nunca ligava pra saber dela, então era nós mesmos que éramos os responsáveis pela sua saúde, como foi duro os últimos anos e meses, o Alzheimer é terrível, uns seis meses antes da pandemia ela faleceu.

Mas eu sempre fico pensando, como a vida dela poderia ter sido diferente, ela é certamente só um exemplo das agruras que o machismo promoveu e ainda promove em um sociedade como a nossa.

Que ela finalmente esteja em paz!

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 18/05/2021
Reeditado em 19/05/2021
Código do texto: T7258543
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