O VELÓRIO DO CAPITÃO

O VELÓRIO DO CAPITÃO

Alberto Vasconcelos

Corria o mês de junho do ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1927 na movimentada Vila de Salgueiro, Sertão de Pernambuco. A chuva que começou na barra do Natal, ainda estava presente nas festas dos Santos mais festejados do Nordeste. A fartura estava garantida para mais de ano e a alegria do povo era contagiante. Festa para todo lado, na rua, nos arraiais e nas fazendas. A fazenda Catingueira pertencente à família Pereira, estava sendo tocada pelo Capitão Genésio, filho e neto de antigos coronéis da guarda nacional que, para manter a tradição, se intitulou Capitão, mesmo sem ter a carta patente nem farda nem nada. O Capitão, como exigia ser chamado, desde muito novo era conhecido por desencaminhar moças pobres e depois, arranjar marido para elas com a ajuda dos seus capangas. O sujeito que fosse escolhido para ser o “marido” tinha duas alternativas, ou aceitava o casamento para tirar a responsabilidade dos ombros do Capitão ou morria, geralmente numa briga de bodega, quando o cabra era chegado a tomar umas e outras ou num acidente qualquer que nem chegava a ser investigado pelo comissário cuja nomeação fora por interferência da família do Capitão junto ao governo do Estado. Dona Olindina sabia das trampolinagens do marido, mas fazia de conta que não sabia de nada e se alguém viesse lhe falar sobre os muitos filhos do Capitão espalhados pela redondeza, ela cortava a amizade e mexia os pauzinhos para a pessoa ter que se mudar para bem longe. Numa dessas festas em que a cachaça rolava solta desde cedo, houve um desentendimento entre o morador e um dos capangas do Capitão, porque o homem não queria ninguém armado dentro da casa dele. Depois da troca de desaforos, o dono da casa meteu a faca no capanga que puxou o revolver e atirou, mas por estar ferido, errou a pontaria e acertou bem no meio da cara gorda do Capitão que nem teve tempo de estrebuchar, morreu na hora. Foi um aquieta-arreda dos diabos. Gente correndo para todo lado. O dono da casa sumiu na caatinga. O capanga foi para a farmácia de seu Jovelino, e o cadáver do Capitão colocado numa rede para ser levado para a fazenda Catingueira.

Cléa Magnani

Quando o capanga chegou esfaqueado na farmácia de Jovelino, a notícia se espalhou mais rápida do que fogo em campo de sapé seco. Como o ferimento fosse só na banha do bucho e não precisasse de trato mais acurado, o farmacêutico enquanto ia chuleando a barriga do sujeito, quis saber como foi que aconteceu o caso. Com toda a pinga que havia tomado depois do crime, para não sentir dor, e desgostoso por ter matado o Capitão, o capanga disse que o acontecido aconteceu por causa do lazarento do dono da casa, que se ele não tivesse criado caso por causa da sua arma, ele não teria atirado. Ao que Jovelino concordou plenamente, pois que, com uma opinião clara como aquela, ninguém discute. Só quis saber na casa de quem foi aquela festa. – De Nonato! Aquele filho duma égua! Mas eu vou achá ele e acabá cum ele e c'oa raça dele todinha! Fazê eu matá o meu Capitão! - E caiu num choro inconsolável que não se sabia se era de remorso ou de medo das consequências. Quando o corpo desfigurado do Capitão chegou na fazenda, ao ver seu marido com três olhos, pois o tiro foi bem entre os dois, dona Olindina deu um grito: -Valha-me meu Padim Padre Ciço! E desmaiou. Acudida pelas empregadas que lhe trouxeram álcool canforado, chás de Melissa, Capim Santo, Arruda, e tudo o mais que havia no canteiro da horta, a pobre mulher agora viúva e herdeira de todos os problemas que o Capitão resolvia na ponta da faca ou à balas, foi recobrando os sentidos e caindo na real: O Capitão Genésio Pereira estava morto, e o que haveria de aparecer de “viúvas” e de herdeiros, naquele velório, era preocupante. Como morto não pode esperar. O velório teria de começar naquela noite mesmo, durar até à tardinha do dia seguinte e o enterro seria na hora do Angelus, quando o sino da matriz batesse seis horas, para que o Capitão fosse carregado pelos anjos para o Céu. Na noite e no dia seguinte as beatas rezaram as incelenças se desmanchando em lágrimas ao redor do caixão. Quando eram duas horas da tarde, entra Nonato e se debruça sobre o caixão chorando copiosamente: - Capitão! Meu paínho! O que vai ser de mim sem painho? Ao ouvir essas palavras, Dona Olindina desmaiou...

Silvia Grant

Apesar de ser um dos filhos do Capitão, Nonato, indiretamente foi causador da morte dele, então como é que esse filo d’uma égua teve o descaramento de aparecer no velório e ainda fazer a visagem que fez? Arre! Mas aquilo era mesmo demais. Quem depois disso ia discutir o que estava certo, o que estava errado? Os capangas, cheiros de aguardente que corria solta durante todo o velório ficaram avexados com a audácia do cabra. Entreolhando-se começaram a fechar o cerco em volta de Nonato que, junto às beatas chorava copiosamente, fazia coro e se protegia. Quando parecia que o tempo ia fechar, outras surpresas foram surgindo: filhos, filhas, e dezenas de quengas e mulheres para chorar a dor pela perda do amante sertanejo. A fama de garanhão abusado do capitão era conhecida por todas as paragens da caatinga. Uma vez morto, quem iria peitar os bastardos e suas mães? Era filho que não acabava mais! Era home feito, guri, bacuri ainda na barriga das dezenas de donas que se diziam a ele amancebadas. O velório transformou-se num verdadeiro furdúncio. Ninguém entendia mais é nada, era um bate-boca só. Era donzela desmaiando, rapariga brigando, cabra macho ameaçando. Só faltava a própria flor do mandacaru chegar para reivindicar a paternidade. Dona Olindina, praticamente acuada e carregada, se retirou para os seus aposentos acompanhada de Jovelino, empenhado em lhe prestar socorros e administrando-lhe pesada medicação para que não viesse a ter uma síncope. Em meio a discussões, goles de café, pingas, ameaças, gente chorando, criança correndo, mulheres gritando, chega o padre para encomendar o defunto. Com cara de abestalhado, e de quem não sabe de nada, o padre começa a tecer comentários sobre a “nobre” pessoa do Capitão, salientando sua bravura, generosidade e hombridade inexistentes. A cada observação descabida, os presentes se manifestavam se manifestavam em voz baixa protestando injuriados. Era muita petulância e sem vergonhagem daquele religioso. Depois de tudo, ainda falar bem do Capitão. Os ânimos estavam para lá de exaltados e o pobre pároco, pressionado, deu por finalizada a cerimônia fúnebre.

Aristeu Fatal

Nunca se viu um cortejo fúnebre na Vila de Salgueiro, e em todo sertão de Pernambuco, quiçá até na capital, tão concorrido. Centenas de carros, carroças, jegues, cavalos, e toda espécie de meio de transporte, deixaram a casa do Capitão, além dos que não tinham como ir sem ser a pé. Foram notadas as presenças de ministros de Estado, representando o Presidente da República, senadores, deputados federais, deputados estaduais, o prefeito de Vila de Salgueiro, seus secretários, vereadores, fazendeiros, a jagunçada e, até, o presidente do Sport Club Recife, que deixou de ir assistir ao jogo final entre Sport e Náutico em disputa pelo Campeonato Pernambucano, para comparecer ao enterro do Capitão, que era sócio benemérito do rubro-negro recifense. Ao ser baixado o corpo, enquanto o caixão era colocado em uma das gavetas da sepultura familiar do Capitão, aliás uma obra prima do escultor maior de Pernambuco, Zequinha do Capibaribe, houve um sem fim de discursos das mais diversas autoridades presentes. O Prefeito, por sua vez, pediu ao sanfoneiro, também presente, que tocasse a toada preferida do falecido, como fundo musical de sua oração, acompanhada pelo povo cantando em coro. Ao final, um foguetório. Nonato, quando soube que o capanga ia vingar o Capitão, desapareceu do mapa. Ouviu-se falar que ele foi para São Paulo com a família, onde, após alguns meses, veio a falecer vitimado por um tiro perdido, quando jogava uma partida de dominó, num boteco perto de onde morava, em Pirituba. Dona Olindina, cada vez mais apegada ao farmacêutico Jovelino, solteirão, acabou se juntando com ele. Para tratar dos casos referentes aos possíveis herdeiros do Capitão, ela contratou um advogado da capital, especialista nessa intrincada matéria. Os capangas do falecido, por não terem mais serviço, juntaram-se ao bando do Capitão Virgulino Ferreira, conhecido por Lampião. Até hoje em Salgueiro, quando se fala nessas histórias do Capitão da Fazenda Catingueira, é motivo de muita briga e as pessoas mudam o rumo da conversa, para não morrer mais ninguém. Já pensou?

Aristeu Fatal, ALBERTO VASCONCELOS, CLÉA MAGNANI e SILVIA GRANT
Enviado por Aristeu Fatal em 17/05/2021
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