A VIDA E SUAS REMINISCÊNCIAS - II
Por Ramon Bismarck
Instintivamente eu fiz de mim um alvo para que os homens me
desejassem internamente. Desejar o exterior é fútil, nojento, eu
escolhi a intelectualidade. Deitada na cama, casa solitária,
apartamento número 23, um sol que sorria, as águas do Rio
Capibaribe iluminavam o teto, me vi voando, voando sobre as
pontes, sobre os telhados, humanos, animais plantas, carros... me
vi sobrevoando o Brasil.
NAQUELE DIA OS JOVENS GRITAVAM.
Cartazes diziam “ESTUDANTES UNIDOS, JAMAIS SERÃO VENCIDOS”
“AMANHÃ VAI SER OUTRO DIA” “POR UM GOVERNO MENOS CORRUPTO”
“BRASIL EM CONSTRUÇÃO”
BRASIL EM CONSTRUÇÃO.
De repente me lembrei da minha carteira de identidade que deixei
no balcão da padaria, desci correndo as escadas, elevador
quebrado há mais de 20 dias, suor escorrendo, a saia corria com
o vento, os chinelos potentes, oh glórias!
- Amanda, sua calcinha tá aparecendo!
Gritava o porteiro.
Em frente ao edifício, os manifestantes estavam irados, não
havia alegria, não havia conformação, não haviam coordenadas, o
cheiro de flor subia às narinas, não sei de onde vinham, comecei
a me desesperar, precisava chegar à padaria, em contrapartida
comecei a me conformar com a ilusão de que deviam ter guardado
meu documento, pra que iriam querer?! Ainda assim precisava
passar por aquela multidão de fúria e revolução.
PATRIOTISMO É UMA MERDA MESMO!
Tambores, atabaques, buzinas, gritos... Palmas. “Com licença”
“Com licença, por favor!” a vivacidade dos meus chinelos foram
abafados por uma pisada numa poça maldita de lama. Continuei
minha árdua batalha contra a revolução. Graças aos céus o
tráfego de automóveis estava parado. Ilesa, com vida, apenas
suja de lama e um coração acelerado, pude atravessar a rua
tranquilamente. A padaria, fechada. Não julguei, era de se
premeditar, que burra eu fui, como não imaginei, o comércio
fechado pela manifestação. O “COMÉRCIO”.
“Eu não sei nem o motivo dessa manifestação, o que importa é
vender meu churrasquinho e minha água” - dizia um vendedor tipicamente metropolitano.
Atravessei novamente a rua e me pus em campanha pelos
revoltosos, de repente e inesperadamente senti uma cotovelada nos seios, cai no chão chorando, precisava me levantar pra não ser
pisoteada, além da dor eu não conseguia tirar a minha cabeça do
filme “A guerra do fogo” de Jean-Jacques Annaud, me apoiei na perna de
uma jovem e consegui me levantar... segurava meu seio esquerdo que
pulsava como nunca, nem quando abraçava meu grande amor de
infância, fui andando e chorando, gritava, era abafada por
outros gritos mais, nosso paradoxo em comum, um
sofrimento por algo. Então uma garoa veio abençoar o mormaço.
IGNOREI A DOR E SOQUEI UMA PRETA PRA SANAR TODA A RAIVA EXISTENTE. CEDI À BARBÁRIE.
Ela veio com tudo puxando meus cabelos, caímos, algumas pessoas
vieram nos apartar e ela me xingou dos piores nomes possíveis,
eu apenas sorria e bebia as lágrimas que escorriam. Me
desesperei quando vi um tufo loiro de cabelo na mão da preta,
instantaneamente levei meus dedos à cabeça e toquei o couro
cabeludo em pendência, doía mais que a cotovelada, mandei me
largar, e voltei ao prédio de tédio.
- Amanda, tudo bem? - Gritava o porteiro.
Subi, tomei um banho, comi uma maçã, deitei na cama e me
imaginei voando, de calcinha vermelha... Com cabelos e meu
documento de identidade.
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