O Que Um Corpo Não Pode Viver Dentro Da Cidade?

Uma praia, um dia de sol, um dia muito mas muito quente, pessoas de todos os tipos, magras, gordas, negras, asiáticas, brancas, homens e mulheres cis, homens e mulheres trans, crianças, adultos, pombos, bolas, pessoas sorrindo, pessoas chorando, velhos, jovens, pessoas altas, pessoas baixas, pessoas trabalhando, pessoas passeando, pessoas que trabalham enquanto outras pessoas passeiam, pessoas que só trabalham porque outras pessoas só passeiam, pessoas queimadas de sol, pessoas lambuzadas de protetor solar, adultos pedintes em situação de rua, crianças pedintes em situação de rua, pessoas comendo camarão, tomando uma cerveja, tomando uma água de coco. Ah! Tomando uma água de coco gelada, refrescante.

Batata frita soterrada na areia, cachorros correndo, pessoas andando de bicicleta, lixo, muito mas muito lixo. Uma areia fofa longe do mar e a medida que a gente se aproxima da água ela fica bem mais dura, úmida, mas ainda sim mais dura. Garrafas pet, tampas, canudinhos, sacos plásticos e catadoras e catadores de latinha.

Eu. Eu no meio disso tudo. Um ponto. Mais um no meio de um mar de gente, alguém que faz muita falta pra uns e um completo desconhecido para outros.

Quando eu penso na Cidade é essa imagem que me vem na cabeça, um conjunto de pessoas diversas molhadas, suadas, queimadas, na sombra, no sol, brigando, brincando, enfim, uma praia. Mas não uma praia silenciosa, sem ondas, de águas cristalinas, mas aquela praia que se andarmos pela areia de uma ponta a outra vamos encontrar canos de esgotos que dão para o mar, que eu, muito sabiamente, muito sabiamente mesmo, eu pulo. Pulo. Eu pulo. Pulo a água suja do esgoto e continuo o meu caminho, seja até o banheiro, um quiosque, encontrar alguém ou só porque eu quero andar.

Os sons da cidade são iguais aos sons que tem na minha cabeça, são agitados, simultâneos, barulhentos. Sons que atrapalham outros sons, pensamentos que atrapalham outros pensamentos. O ritmo da mente e do corpo se encontram e se desencontram, se encontram e se desencontram. Mas, assim como na praia, eu vejo o mar, um lugar que não importa aonde eu esteja, eu consigo ver e eu tenho vontade de ir até lá.

Nem sempre eu quero passar o dia dentro da água, mas quem se recusa a tirar os chinelos e ir molhar os pés, hein? Se refrescar na água gostosa, nem tão quente e nem tão fria, aquecida naturalmente pelo sol e só a brisa que vem do oceano já me faz imaginar outros dias possíveis. Momentos de leveza, paz e tranquilidade. Mas o mar, assim como a cidade, é tortuoso, agitado, ele me engana. Já dizia o ditado, mar calmo não faz bom marinheiro. Mas a gente é esperto, só molhar os pés na beirada da praia não faz mal a ninguém.

Horas mais tarde na cidade Tadeu está numa padaria tomando um cafézinho preto como de costume junto com seu amigo Vinícius e ficam falando sobre os corpos das mulheres que passam pela rua e fazendo piadas de como as trataria na cama se tivessem a oportunidade, uma dessas mulheres que passam é Safira que está correndo para chegar até o ponto de ônibus porque acabou de receber uma ligação de emergência. Safira é enfermeira e foi chamada às pressas por conta de um problema no hospital em que trabalha e quase todos os enfermeiros e enfermeiras também foram chamados, mesmo os quais estavam em seu dia de folga, como Safira. Safira pede para o motorista do busão esperar, mas ele não espera, então ela tem que correr para o plano B, o metrô. Já são quase 18h da tarde e o metrô está um inferno, extremamente lento e lotado. Safira fica no meio do vagão e deixa a mão direita em cima do bolso onde está seu celular e se apoia nas barras com a mão esquerda. Atrás de Safira está Antônio que enquanto esmaga Safira, é esmagado pela Neide e pelo Cláudio, que é esmagado pelo Luan, Edson e pelo Diogo, que são esmagados por Valdemir e Marcelo que está bem do lado de Caio que com muito esforço desce na próxima estação, passa pela catraca, sobe as escadas e esbarra num senhor que está acompanhado por uma menina de 09 anos, Josi, que veio com o tio para São Paulo, abandonou mãe, irmãos e irmãs porque segundo o que seu tio falou; aqui eles dois vão conseguir uma vida melhor.

O tio de Josi pergunta pra mim que ônibus eles pegam pra chegar num endereço que tava escrito numa folha de papel amassada que ele trazia no bolso, eu aponto pro ponto que fica na frente da estação e então vejo um pombo se banhando numa poça de água de esgoto, ele bica a água em seus pés e depois passa o bico debaixo de suas asas várias vezes se refrescando com o banho daquela água fria. Que situação que esse bicho se encontra, que nojo, se fosse gente ia morrer amanhã mesmo de doença… não sei se é verdade, mas dizem que esses bichos como pombos, ratos, pulgas e baratas vieram pro Brasil através dos navios europeus durante a invasão, esses bichos que transmitem doenças não são originários daqui mas se acostumaram muito bem ao clima daqui e principalmente ao clima das cidade… Eu continuo andando pela calçada e vejo na minha frente a alguns passos um moço deitado no chão que se levanta, se espreguiça, coloca seu cobertor num dos ombros, vai até o meio fio que está com uma poça gigantesca de água suja e começa a andar com os pés afundados. Afundados naquela rua.

Eu lembro de quando eu era pequeno e a minha mãe falava que se a gente colocasse as conchas da praia na orelha a gente conseguiria ouvir o som do mar, mas se a gente não tiver conchas a gente pode juntar todos os dedos e fechar um pouquinho a mão e colocar a palma no ouvido, daí também conseguimos escutar um pouco de como seria o som do mar.

Todas as pessoas continuavam a passar por mim, por ele, desviavam o olhar dele ou nem o olham. Ele vem na minha direção e diz: “O moleque, se a gente fosse pombo a gente voava, não é mesmo? Ai que raiva de não ter nascido pássaro. Mas já que a gente não é a gente anda, né não? Fica parado aí não em, se não vai ser assaltado, boa noite e fica com Deus aí em moleque.”

Nem ouso inventar uma história sobre ele, pra onde ele foi ou de onde ele veio, não ouso acrescentar uma vírgula ou um ponto na história de qualquer uma dessas pessoas, não as conheço, só as vejo e sei que assim como na praia e na cidade tem várias, muitas e muitas outras histórias, histórias de pessoas que só estamos vivendo um dia atrás do outro e cada vez que ouço uma história nova eu penso: O que um corpo Não pode viver dentro da Cidade?

Domingos José
Enviado por Domingos José em 16/05/2021
Código do texto: T7256993
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