Chão de receitas
Não importava o que se passava no corredor da clínica, Álvaro teria sempre a mesma atitude, o mesmo ato ao ver e receitar. Às vezes, quando o cansaço era muito, ele receitava antes, e após observava os efeitos colaterais. A receita podia ter distintos componentes, desde um chá de quebra-pedra a um coquetel complexo. Na falta do que prescrever, algo inusitado: uma boa noite de sono e amor. Ele nunca deixava o paciente sem resposta, sem rumo. Com a medicina avançada, tudo poderia transformar-se em prescrição. Essa era, para ele, a chave da vida, uma boa receita no momento em que lhe cabia, seria sinônimo de uma vida saudável e tranquila.
A conclusão teria partido da observação, segundo amigos do doutor. Ora, se existiam receitas de culinária, para passar de ano na escola, para criar filhos, para a vida, qual seria o motivo para pânico?
Essa era a base do doutor Álvaro, que possuía a clínica. Vamos conhecer a rotina do homem?
Ao acordar, a indicação era esperar dez minutos para levantar-se. Um café da manhã deve ocorrer ao erguer do sol. Quase esquecendo, eram oito horas de sono! Nada a mais, nada a menos. O organismo assim podia suprir suas necessidades.
No trabalho, receitas até no caminhar, que deveria ser um passo de cada vez. Quando o pé direito erguia-se do chão, o esquerdo mantinha-se firme. Passos na direção das pernas. O tipo de sorriso era uma questão ainda pendente.
A maneira de sorrir era um assunto enigmático. Poderia ou não mostrar os dentes? Será que deveria ser muito aberto ou estilo Monalisa, do Leonardo da Vinci? Precisaria desenvolver essa receita simpática.
Para aperfeiçoar prescrições, ele separava a noite, sentado junto ao canto esquerdo em relação à porta do quarto, com o corpo voltado para a janela e as pernas levemente esticadas, formando um ângulo de trinta graus entre as canelas e as coxas.
Janta, de segunda a sexta, às oito horas, com duração de uma hora. Um bom período para quem queira ter uma boa digestão. No prato, uma comida de cada cor, duas repetidas seria um excesso. Caso houvesse massa, as batatas ficariam para o próximo dia. A alface e a rúcula não participavam da mesma refeição.
Essa era para Álvaro uma vida sem conflitos, com tudo acontecendo em perfeita harmonia. Sem pânico. Não havia motivos para ansiedades.
O nosso doutor certa vez se perguntou: e os problemas? Como criar receitas para organizá-los? Mas logo ele decretou a si mesmo: “problemas deverão ser resolvidos na hora em que acontecerem. Caso não seja possível, ficam para serem pensados das seis às sete horas, mais especificamente no horário da novela”.
As pessoas tinham um grande carinho por ele, que possuía a prescrição para carisma e sabia usá-la, porém, quanto à vida amorosa, não conseguia conquistar nenhuma mulher. Mas nem queria, isso o faria mudar receitas as quais estava acostumado, gerando assim um problema que duraria a novela inteira para ser solucionado.
O nosso Álvaro gostava de mencionar um fato que lhe inspirou a seguir aprimorando receitas (é importante mencionar que, desde criança, ele sempre procurou adaptar-se as mais diferentes situações de um modo padronizado. Se na terça-feira pulara corda, sempre o fez no mesmo dia, e assim por diante). Certo dia, há dez anos, entrara em seu consultório uma senhora desiludida com os demais clínicos, a dona Simpléria. Sobrenome Da Luz. Álvaro consultou-a por vinte e três minutos e dez segundos, com minuciosidade. Examinou o ouvido, garganta, pulmão esquerdo, após o direito, todas as articulações, enfim, o que os materiais do consultório o permitiam fazer.
Tanto detalhismo, aliado a exames posteriores, fez surgir o diagnóstico: pneumonia. Indicou o medicamento adequado. Ela curou-se.
A senhora, em perfeito êxtase emocional, proclamou a frase que dera sentido ao proceder de Álvaro:
-O senhor é um milagre encarnado!
Milagre. Então seria o doutor uma nova espécie de Messias? Em caso afirmativo (pois esse fato só se confirmaria após a morte e quem sabe uma ressurreição), então ele possuía o dom pleno da cura e bem viver, que se manifestava nas receitas que o mesmo prescrevia. Sua escolha pela medicina teria sido um assopro celestial.
Assim fortalecera-se o seu desejo e obsessão. Agora, mais do que nunca, nada lhe fugiria às regras e para tudo existia uma receita.
Tudo poderia ser controlado. Deveria fazê-lo mais e mais. Hoje ele conseguia lidar com a vida dele, mas no futuro, com esse dom magnífico, ele poderia resolver os problemas do mundo todo, da vida de todos, e entenderia o princípio da existência, suas normas e poderia submetê-la a que quisesse.
Lá estaria Álvaro, resolvendo o problema dos africanos sofrendo com diferentes doenças. Poderia também inventar receita para aniquilar e excluir holandeses (povo que nunca o atraiu). Estava confirmando-se, dia após dia, que o médico realmente parecia-se muito com Cristo, e nascera para ser Deus, o absoluto.
Era manhã de mil novecentos e oitenta e cinco, mais precisamente dia vinte e quatro de novembro, quando o doutor caminhava até sua clínica, assim como fazia todas as manhãs após o café que acontecia ao amanhecer, após exatas oito horas de sono. Comera pão com geleia. Bebera café preto com duas colheres de açúcar.
Cada passo era dado era dado conforme a receita de bem andar. Um pé ao alto, outro firme no chão. Cuidado para dar o mesmo número de passos, o que traria a confiança que utilizou a velocidade correta.
Mas naquela manhã não deveria ter acontecido. Num ritmo pontual para o trabalho, do outro lado da rua avistou seu irmão, o qual não via há vinte anos. Antes de qualquer atitude o médico deveria pensar como cumprimentar esse familiar a tanto tempo distante. Sabia que, para dar certo, tudo deveria ser previamente planejado.
Não possui boas lembranças do filho da mesma mãe e pai. O agora homem nunca aceitava as prescrições de Álvaro, chegava a brigar com o mesmo para tentar mudá-lo. Mas não seria por isso que o doutor o ignoraria, ali, do outro lado da rua.
De repente o irmão apressa-se em cruzar a rua, com um largo sorriso, um olhar de admiração ao encontrar Álvaro tão elegante, formado, e ali, tão perto. O médico, estático, pensava como erguer sua mão direita quando um carro desgovernado, não seguindo nenhum script, atinge com violência o irmão, que foi jogado ao chão.
O que faria? Como agir? Durante toda a vida o grandioso clínico criara centenas de métodos de como agir, quando o fazer e o que efetuar diante de todos os fatos que poderia imaginar, mas nunca, nunca havia pensado no final da tão submissa vida.
E ficaram lá, abraçados, no centro da rua, no chão: Álvaro e suas teses. Álvaro e o corpo de seu irmão.