O Iphone - capítulo 1

Em Campo Maior, numa casa pequena e de teto inclinado pra baixo, vivia um rapaz batizado de “Tony de Lis Marcolino”.

Tony de Lis era magro! Tão magro que o corpo cedia e a espinha enrolava-se a meio do tronco.

Vivia junto da mãe e trabalhava como vigia numa escola. Na sua rua, os vizinhos deleitavam-se no hábito de se aglomerarem às portas, ainda de manhã, para conversar à vontade sobre a vida alheia.

Mas em Tony de Lis essa tal indecência jamais resvalava, porquanto o seu temperamento esquizoide não lhes dava brecha e, assim, pouco lhes restava para fofocarem de sua vida, senão desprezarem-no, a ele próprio, à sua clausura e à sua constante expressão deslocada.

Mas nem sempre Tony de Lis se comportava assim. Na infância era alegre e tão vivo que poucas pessoas podiam contê-lo. Uma vez, aos dois anos, fugiu da casinha da avó e andou pelas ruas confusas do bairro sozinho, por mais de um quilômetro, até que chegasse à casinha da tia, onde, então, abaixou-se ao portão e espiou pela brecha os seus primos chutando uma bola. Animado, deixou que escapasse um gritinho e assim que o mais velho dos primos, ouvindo-o, se fez achegar e seus pés avultaram em rumo da brecha, Tony de Lis quis correr, mas o primo, mais rápido, abriu o portão, segurou-o, pô-lo pra dentro, deu-lhe um bom banho e deixou-o de volta na casa da avó, onde junta da mãe procurava-o aflita.

Aos dez anos, Tony de Lis construiu uma caixa de som com um monte de tábuas, um autofalante, uns fios e mais tralhas colhidas de vários bagulhos. Por sinal, Tony de Lis era mui talentoso em trabalhos de mão, tinha muito futuro, não fosse aos dez anos cair num abismo terrível; numa praga fatal que lhe iria murchar as vontades e os dons e, com isso, aterrar os seus sonhos: um smartphone!

Usava o celular da mãe e, durante o primeiro vigor, tendo nele aflorado as paixões, os anseios e as dúvidas, descobriu-se feioso, a despeito de a mãe e das tias a todo momento lhe estarem louvando a beleza. Foi-lhe um choque! Tão mais porque dentro de si uma nova emoção se agitava, atraindo-o àquelas pessoas de olhos brilhantes e rostos perfeitos, ao passo que nenhuma delas lhe era, um tantinho que fosse, propensa. Assim, contra a própria vontade e sem nem perceber ele as ia adulando, conquanto, no fim, só colhesse migalhas, desdém e desprezo. Deu-se conta ligeiro de que o celular lhe causava bem menos desgosto e, portanto, entocou-se naquele aparelho.

Tony de Lis, afinal, teve lá seus romances. Namorou duas vezes por breves períodos. Entretanto, na casa de Tony de Lis não havia transporte e, também, sua mãe quase nunca podia lhe dar uns trocados. Sendo assim, as meninas deixavam-no. Não porque fossem em si cobiçosas, mas porque vendo as amigas postarem retratos em tais restaurantes, em tais litorais e ambientes, compunham seus imaginários naquelas figuras e delas, então, se encantavam, enquanto Tony de Lis, reservado, jamais sugeria ou, tampouco, podia bancar estes gastos.

Assim, encafuou-se mais ainda em seu celular, começou a varar as noites e a perder peso, porque, dado o vício, não se importava em se alimentar nos horários corretos.

Então o tempo passava, num instante terminara o ensino regular, passou dos 20, sem que houvesse desenvolvido uma habilidade que não fosse estar horas inteiras defronte ao celular.

Quando teve de trabalhar por necessidade e insistência da mãe, não demorou um ano nos empregos em que conseguiu. E assim não era por incapacidade, tão menos preguiça, a verdade é que ambos os lugares faliram. Primeiramente trabalhava como garçom numa barraca de lanches e, depois, esteve atendente numa loja de acessórios para celulares. Em ambos os negócios, o seu salário não ultrapassava os 600 reais mensais.

Em seguida, veio uma tamanha crise que o fez estar desempregado quase um ano, até que num golpe de sorte a sua mãe lhe conseguiu trabalho como vigia numa escola municipal, depois de apoiar a candidatura de um vereador nas eleições daquele ano.

Para Tony de Lis aquilo seria ótimo. O seu primeiro trabalho formal, em que lhe pagariam um salário-mínimo e sem o receio de o perder à primeira vicissitude, ao menos não nos próximos 4 anos. Mas, já no primeiro mês, depois de corridos os 30 dias de seu exercício, nem rumor de pagamento. Aliás, teve de se habituar à esta nova condição, o pagamento costumava atrasar 2 meses, às vezes 3, chegando a 4. Próximo das eleições, diziam, regularizá-lo-iam. Costumava ouvir também que o prefeito em si não era um ladrão, mas que se tivera de comprometer com tanta gente em troca de apoios que, após a eleição, a prefeitura estava que não se aguentava de comportar aquela toda gente em cargos comissionados. Assim, quando não acontecia de os secretários e o prefeito usarem a verba de pagamento duma classe específica de funcionários para pagar outra há mais tempo sem receber, usavam-na para saldar mesadas de um grupo seleto de funcionários do alto escalão, com quem tinham se comprometido assim em vista da influência social dessas figuras. Tais recebiam essas somas à parte de seus vencimentos, que formalmente não podiam alcançar tamanho valor, e não havia clamor que os sensibilizasse a delas abdicar um mês que fosse. Contaram-lhe, a Tony de Lis, que, certas vezes, estando os funcionários menores há bastante tempo sem receber, o prefeito suplicava a esses marajás para que renunciassem àquela soma naquele mês, ao que eles, empedernidos, respondiam-lhe: “Nem pensar! Que se virem, tu e eles! Também temos os nossos problemas, cada um com os seus! Trata de nos pagar ou tiraremos hoje ainda o nosso apoio!”

E dessa maneira ia passando Tony de Lis, quem, aliás, acabava de despertar, às 6 da manhã, para trabalhar.

Sentia-se zonzo de sono, tinha ido dormir após a meia-noite. Caminhou oscilante pelo quarto e, para não ter de se molhar inteiro na água gélida da madrugada, lavou apenas a cabeça. Vestiu-se e foi à cozinha. À essa hora a sua mãe terminava de passar o café e tirava do fogão a cuscuzeira, que fumegava.

Começava a desjejuar quando a mãe lhe perguntou:

- Sairá para trabalhar assim, sem tomar um banho?

- Banhei...

- Mente que rouba! Eu te vi passar agorinha do banheiro vestido como entrou. Larga de porcaria e vai tomar um banho, tranca!

- Ah! – exclamou chateado. – Tomo um banho mais tarde na escola.

Essa tal reprimenda serviu para o aborrecer sobremaneira; ele, quem já houvera ressabiado o sabor do cuscuz. Próximo de sua casa não havia padarias, para sua mãe, então, era cômodo comprar massa em quantidade para a preparar quando quisesse; era cuscuz pela manhã, cuscuz à tarde; e, já o tendo abusado, espalhava-se em seus dentes como terra.

gurudorock
Enviado por gurudorock em 11/05/2021
Código do texto: T7253095
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