A Fé Que Recebi

A quem irei chorar quando o medo da velhice aparecer? O tempo tem me ensinado, sinto que estou me desprendendo das mãos que me conduzia. Nascer é receber a imposição de sobrevivência. O ser sempre me foi mas importante que o acreditar.

Na juventude isso não me incomodava nem mesmo doía, nunca me ocupei com razões ocultas, devoções, religiões. Observo que a religião é o refúgio fácil para homens e mulheres que não estão dispostos a enfrentar os desafios da condição humana. Minha descrença não é por acaso, da minha mãe herdei a ideia que, Deus é criação humana. Nunca precisei crer de modo diferente.

A vida na minha casa, não permitia espaços para outras questões que não fossem as humanas. A proteção que recebi deles, fez com que eu não precisasse desse apoio.

Cresci assim, meu pai era militar que tinha o peito, coberto por medalhas "Todas conquistadas com trabalho, dedicação e competência." Dizia ele, desprovido de dividir a glória com divindades. Suas crenças eram nas coisas terrenas. Minha mãe tinha a mesma convicção.

Ela nasceu e cresceu entre celebrações e princípios religiosos. Desde menina recebeu da minha avó todos os fundamentos de uma fé católica. Foi educada em rígido regime religioso, mas sempre teve no rosto o brilho opacto de olhos indiferentes.

Seu alívio se deu quando no momento em que meu pai chegou, para assumir o comando do exército. Ateu convicto, não demorou em reconhecer em meio a tantos olhares beatos o olhar cético de minha mãe. Para desespero de minha avó, com menos de um ano de namoro foram morar juntos. A decisão trouxe consequências, minha mãe nunca mais foi recebida por sua família. A religião foi a causa, rompeu com a tradição da família, sujou a reputação de todos. Minha mãe perdeu a família por não crer em Deus.

Mas essa postura só é confortável na mocidade, eu os acompanhei até o fim. Vi de perto quando os olhares ficaram perdidos como se procurassem por alguma esperança futura. Meu pai morreu primeiro, as medalhas não o salvaram da solidão final. A farda não o resgatou de suas desesperança, o tempo retirou a competência, a possibilidade de trabalho, a tal dedicação á qual ele atribuiu resultado. Restou somente a indigência, as mãos desprendida de buscar o céu, a voz sem prece, sem salmo. Terminou só. Nem mesmo suas conquistas alíviou da terrível solidão final.

Minha mãe seguiu o mesmo caminho, também foi surpreendida pelos desconforto da fragilidade. O longo período na cama, provocou a incapacidade. Passava dias e noites agulhada pelas dores. O corpo foi perdendo a grandeza. Deitada, permanecia com os olhos sempre posicionados em direção do céu, como se procurasse fé para gritar uma súplica, um dedo divino. Mas nada lhe foi dado. Depois de uma vida inteira sem Deus, não seria na hora final que ela daria o braço a torcer. Ela faleceu um ano depois do meu pai.

Com o sepultamento dos dois, senti as raízes das minhas seguranças humanas serem arrancadas. Naquele homem estava o meu todo-poderoso, o homem que me protegia quando o peso do mundo recaia sobre os meus ombros. Naquela mulher estava o colo que me tirava o medo, a tristeza.

Fé natural, só isso recebi. Nenhuma fé sobrenatural me foi ensinada. Foi em mãos humanas que segurei, foi em olhos humanos que busquei proteção, foi em braços humanos que reencontrei alegria. Neles eu acreditei, depois eles se foram e não me restou fé alguma.

Cynthia Thayse
Enviado por Cynthia Thayse em 05/05/2021
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