Um Corpo no Chão
Mataram Miguel! Alvoroço. Eu e meus três companheiros de farra e de cachaça, numa mesa na praça da Agonia, naquele bairro zona norte. Vozes grogues, perguntamos quem é Miguel e continuamos jogando nosso dominó. Passos bêbados, gritaria, chamem a ambulância, por favor, minha boca com sal e sede, bota mais uma lapadinha, o dominó rodando, as pessoas rodando na minha cabeça, bati, gritei. Era jogo de a vera, bufunfa na mão, senão não vale, peguei o ganhado, tomei mais uma lapada. Que confusão era aquela, perguntei, por que dona Ceiça tá gritando, acho que é mãe do menino, disseram. Mataram Miguelzinho. Foi a poliça. Eu vi. O dominó olhava pra nós, quero jogar não, cês num tem vergonha, olhei pros camarada e eles com olhos vermelhos me apressavam é tua vez, joga, eu com a alma grogue e um calor dos diabos no corpo, quero um cigarro, aí eles me xingaram tu nao fuma, endoidou? Passou uma ambulância apitando na toda, a gente com medo que cabra irresponsave esse motorista, capaz de atropelar alguém. Misera. Morreu alguém?, perguntei e eles sei lá, parece que sim, essa gritalhada toda, só pode. Praça aboletou-se de gente, ai meu Deus, Miguelzinho, como pode alguém atirar num anjo daquele, foi os desgraçados da poliça, eu vi, tava lá, gritou uma mulher rechonchuda de barriga de seis meses, inferno, inferno, berrava.Quando ambulância chegou no local era tarde, Miguel deixara de respirar fazia cinco minutos, dona Ceiça sem querer deixar os paramédicos embrulhar o corpo, tão magrinho, parecia um sibito. Um tiziu. Magro e preto. Os cabras com ficha corrida mais comprida que livro de Cervantes ameaçando retaliar os cabras que atiraram em Miguelzinho, félasdasputas, assassinos fardados, bora descer e invadir a delegacia, mandar eles pro inferno, o Pastor da Igreja dos Remidos acalmando eles, “ não se paga violência com violência, calma, meus filhos, lembrem que Cristo foi torturado e assassinado sem pecado nenhum “, uma ova, Pastor, vamo arrancar as tripa desses mancomunado com o chifrudo, já chega.
Eu já tava com os olhos trocando de tanto beber, mas continuava a limpar os otários amigos meus dando uma buchuda, eu era fera, vi quando chegou uma van, Correio da Notícia, desceu uma mulher e um cabra com máquina de filmar e ela começou “há pouco mais um assassinato aconteceu neste lugar; um menino de 13 anos foi abatido a tiros e os moradores afirmam que os tiros partiram das armas de uma guarnição da polícia que fazia sua coriqueira patrulha, blá, blá, blá…” Eu gostava do jeitos que esses repórteres falavam, gesticulandio, mulher bonita da peste aquela, vi quando chegou um carro da Civil e desceu um brutamontes afastando a gostosa da repórter, ela reclamando o senhor está cerceando o meu trabalho, adorei o cerceando, decorei, seria minha próxima palavra difícil na minha próxima conquista, a última foi escalafobética, ouvi isso numa pregação do padre Aníbal, que vomitava palavras tão complicadas que a maioria dos fiéis roncava, aí eu conheci Dalila e numa conversa de início de paquera lasquei o escalafobética e ela ficou tão impressionada que me levou pras brincadeiras de cama rangedoura. Eu tava bebinho, mas tinha tino pra decorar palavras bonitas, tinha sim, era safo, imitava o rei Roberto, aquelas músicas de dor de corno, mulherada adorava eu. E se eu perguntasse praquela repórter se eu podia cercear ela… Os cabras deram um berro ei, acorda, queres jogar ou não, já limpasse a gente, queremos a forra. A confusão ao redor continuava. Um delegado da Civil tava interrogando as testemunhas, elas diziam a mesma coisa eles chegaram, viram Miguelzinho na bicicleta dele, disseram que ele carregava droga nos bolso, tadinho dele, disse que num tinha droga e botou a mão no bolso, foi quando o meganha atirou, o que tava na frente, gritou arma!, tiro pegou bem no peito dele, tadinho, acho que já caiu morto, ficou lá o corpo estendido até chegar o IML e esse pessoal todo, uma tragédia, até quando, seu delegado, até quando. Pior que essa dor nunca sai nos jornal, né? Se fosse filho de um ricaço, cês num instante resolviam, né? Depois da desgraça feita, eles entraram na viatura e se picaram, escafederam-se, tenho certeza que vai ser mais um, delegado anotou umas coisas e garantiu que investigariam a fundo aquela morte e lamentava e tinha pena da mãe do menino e tinha sido uma tragédia e que teria de ir. O senhor não quer saber o que tinha no bolso de Miguelzinho não?, delegado fez cara de muxoxo e a grávida berrou um pacote de sal, que ele foi pegar na vizinha pra mãe botar no feijão deles, nera droga não!!! E desmaiou. E eu vi aquilo tudo e chamei meus comparça pra ir pro clube Gaiola do Chumbrego e arrumar a vítima pro meu cercear. Tava bebo mas num tava doente não.