Desespero

Um tete-à-tete entre um velho aposentado e seu neto, altas horas da madrugada, quando a brisa filosófica (ou o pavor à mesmice) bateu forte, mas em apenas um dos dois:

- Eu queria mesmo era fazer algo doido. Algo que deixasse o meu coração aos saltos e minha pele alerta, os meus olhos esbugalhados, enquanto meu corpo treme tamanha emoção me domine...

- Ih, queria transar, é, vovô? Ainda levanta alguma coisa, aí? - o neto cai na gargalhada.

- Não, sai pra lá com essa ignorância. Eu tô falando de algo, sei lá... Algo grande, entende? Eu penso em viver uma outra realidade, digamos assim... descobrir coisas, visitar lugares, sabe?

- Agora parece que quer se drogar... - debocha o garoto, outra vez

- Ah, mas que coisa! O que tá acontecendo com essa geração? Você nunca sentiu isso, não? Uma vontade de ultrapassar alguma barreira, algum limite seu, de viver e participar de algo grandioso, que te traga crescimento e novas vivências? Ou o simples desejo por altura, velocidade, adrenalina pura? Que tipo de jovem você é?

- Na verdade, às vezes me sinto um pouco vazio e sem graça, como se faltasse emoção na vida. Mas é normal, né... todo mundo sente isso.

- Mas é isso que me deixa puto. Por que as pessoas de hoje em dia simplesmente aceitam esse "vazio" e essa falta de graça na vida assim, tão facilmente? Por que entregamos de bandeja a nossa motivação e seguimos a vida medíocre de sempre, apenas porque é o que todo mundo faz?

-Eu sei lá, vovô. A minha namorada às vezes me enche o saco com essas paradas reflexivas mas eu realmente não tenho interesse. Desculpa aí, mas acho que agora é a deixa pra eu dormir. Aliás, a mamãe sabe que o senhor saiu do quarto sem pedir ajuda, de novo?

-Ta bem, tá bem... você ganhou essa. Mas um dia, quando estiver no meu lugar e ver que a vida escorreu pelos dedos de suas mãos abertas e sua mente fechada, talvez aí o arrependimento bata e você entenda o que eu quis dizer...

-Ooook?! Então boa noite, vovô.

-Boa noite, garoto.

O vovô não acordou no dia seguinte.

Encontraram, à beira da cama, um exemplar de National Geografic com diversas cidades turísticas circuladas.

O jovem folheou algumas páginas e encontrou, ao lado de cada marcação, a frase: "lugares que ainda quero ir" em uma letra simples, de um senhor que sequer saiu do estado em que viveu.

O garoto entendeu que não foi a euforia que levou o velho até seu quarto na noite anterior, foi o desespero de alguém que só queria mais tempo pra corrigir a tolice de ter vivido como todos os outros, ou talvez de alguns minutos para convencer alguém a não viver como ele.

Pode ser que a segunda opção tenha dado certo.

Lidia Lorena
Enviado por Lidia Lorena em 29/04/2021
Reeditado em 03/10/2023
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