Sinfonia noturna, ou intimidade

Adagio.

Uma mulher por volta dos trinta anos está sentada ao lado de uma mesinha. À pequena mesa, um telefone é guardado por um abajur. Os pés repousam sobre um carpete púrpura escuro, às suas costas a parede é de um forte verde. Não sabemos o seu nome, observamo-la de longe. Como sabemos que tem trinta anos? O corpo esguio nos diz dezenove, mas as linhas de expressão em redor da boca, reveladas pela luz do abajur refletida no policloreto de vinila da mesinha, dizem-nos começo dos trinta; os lábios também, sem o viço de outrora, tempo este revelado pelo resto de seu rosto que ainda conserva um brilho de carnes de menina. O telefone de disco, pesado e encarnado, parece carregar em si o brilho que seus lábios tiveram há dez anos. Pesado e risonho com seus números, soa como um chiste. O abajur, cuja cúpula simples e cônica, de plástico, guarda o gordo telefone, parece ele, por sua vez, um tanto tristonho por mais que sorria os seus lumes para a púrpura do carpete, o verde das paredes e o castanho dos cabelos da mulher tornados acobreados pelos humores das horas que fazem as cores.

Allegro moderato.

A mulher está sentada sobre uma poltrona de couro preto, couro legítimo, animal. Velha, esbranquiçada nalguns pontos, com rasgos e buracos em outros: vê-se o estofamento branco respirar, liberto. A poltrona lha favorece. Vê-se-lhe as pernas, os braços, mas lhe falta o tronco e as coxas, ocultos dentro de um vestido preto simples. Os saltos de ombros dados, também pretos, descansam próximos, os pés que lhes cabem, descalços sobre o carpete. Sabemos que ela espera por algo, pois ocasionalmente lança, com muxoxos, olhares para o telefone. Sabemos que espera por alguém: primeiro, porque o telefone nos sugere que aguarda ao menos uma voz, um mensageiro; segundo: o vestido, os saltos, os estalos pelo corpo que não é de vidro, os resvalos da carne no couro de animal, a expectativa. Observamo-la através de uma luneta, nossa percepção é limitada. É uma luneta simples, não podemos lhe ver os astros movendo os pensamentos fugazes e conflitantes, as nebulosas de emoção cheias de sangue, os fluidos elementares atiçados por miríades de luas. Como se não confiasse nos ouvidos, ela olha mais uma vez para o telefone.

Scherzo.

Ela estica as pernas, e os braços também, solta um longo e gostoso bocejo. Põe o cotovelo direito sobre o braço da poltrona velha, o queixo, finca-o na palma da mão, e senta-se sobre a própria perna. Perde aos poucos a postura de um encontro, a rigidez dos personagens; os músculos relaxados, um marco temporal, um dado de entrega. Olha para o telefone chistoso, não mais com expectativa, mas com uma curiosidade desinteressada: se tocar, tocou... se não tocar, fazer o quê... Percebemos o quanto a indolência lhe fez bem: recuperou íntima espontaneidade, que nós, observadores, passamos a conhecer agora; recuperou em instantes alguns anos, tornou-se mais bela, há beleza nos movimentos. Os cabelos, jogou-os todos para um lado, os lábios foram uma única vez mordiscados de leve, as decepçõezinhas acumuladas na cabeça, transfigurou-as em pequenos bufos que soltava enquanto víamos os pensamentos lhe desenharem o rosto, talvez interpretando sem ela o perceber as possíveis desventuras que a noite lhe havia poupado.

Larghetto. Allegro vivace.

Após um tempo, levanta-se e muda de cômodo. Não a vemos agora. Vemos a poltrona de couro, o abajur barato de plástico, a mesinha sob o gordo telefone de disco, os saltos pretos escorados um no outro sobre o carpete púrpura.

A noite se vai tornando clara: azul cobalto, azul royal, azul maya, ...

Retorna para nós, coloca-se à janela, os olhos semicerrados de uma noite em claro de luzes artificiais. Contemplamo-la ali, os braços postos sobre o parapeito, o corpo inclinado, a observar lá embaixo os que iam e passavam sonolentos de carros e de sapatos, saídos de camas fofas, fadigosos ofícios, e festas outras. O sol citadino e pequeno, sem rancores, procurava lhe imitar os gestos. Ainda era cedo.