Dostoievskiana-parte 3- final

Dostoievskiana- parte 3- final

No decorrer dos dias tinha reparado que aquele sujeito sempre estava por ali, a vagar, talvez no intervalo antes de entrar no escritório. Tive a audácia de segui-lo, mesmo escondido , e reparei que tinha certos hábitos, como bater papo no café com aquela moça de cabelos longos , negros e brilhosos. Davam aquela risadinha forçada, nem forte nem fraca, indicando que eram educados, o que revelava aquela falsidade que me irritava.

Depois caminhava pelo passeio público e olhava as lojas; ali, onde me desprezou e me tratou como um inseto em seu caminho.

Como recuperaria a minha honra? Em um dia , acordei mais cedo que de costume e fiquei ali a fazer hora, prestes e encontrá-lo.

Mil ideias perspassavam em minha mente; todas aquelas humilhações públicas, até a rejeição de Caroline, a jovem com que timidamente engatara uma relação mais afetuosa. Ela gostava de mim, com certeza.

-Mas você vai sair com esse aí? - Era o irmão dela a falar- Esse não tem um gato para puxar pelo rabo.

E ela seguiu seu conselho:

-Temos que dar um tempo...

-Mas que tempo? O nosso tempo é o agora...

- Não me venha com filosofias; não enchem barriga...

E bruscamente as coisas acabaram assim; casou-se com um almofadinha, dado a coisas de grã-fino, como esse que se aproxima agora. Ah, como a bílis enegrece o meu paladar e garganta. Vou na sua direção, vou indo, indo; vamos dar um encontrão; ele com toda aquela empáfia e cheiro de perfume francês; ali para frente a rua passa de plana para uma descida, onde estão as lojas chiques. Ele não faz caso de mim, como se não existisse do mesmo jeito; vou indo, indo e, no último minuto, perco a coragem e desvio meu caminho por um palmo. Ele vencera.

Seguiram-se várias outras oportunidades, e sempre no último minuto, desviava minha trajatória, nunca ele, sempre com aquela empáfia de quem tinha comido bolo folheado a ouro no almoço. Não sei se notara minha presença; sempre fui discreto e me misturava à multidão que ali circulava. Sentia-se tão nas nuvens que nem sequer reparava nos outros seres que ali circulavam que não fossem seus amigos, mascullinos e femininos pedantes como ele.

Não adiantava; se quisesse ser notado, teria que me vestir como ele; talvez assim me prestasse uma deferência. Peguei aquele terno roído de naftalina do armário e mandei a costureira do prédio costurá-lo:

- Hum, está meio velho; vai a uma formatura ou entrevista de emprego?

-Não, é um negócio importante...

Ela achava que tinha entendido a situação.

-Ah, já sei...alguma moça...

Deixei que ela pensasse isso; talvez por isso tenha caprichado tanto. Ficou bom; não impecável, mas dava certo ar de dignidade. Comprei a prestação uma gravata decente e uma camisa e lustrei o velho sapato da formatura. O conjunto ficou razoavelmente bom, somado a um corte decente que paguei com os últimos tostões. Meu almoço de uma semana fora sacrificado.

Ensaiei algumas vezes meu plano, passei ao lado dele com minha indumentária; parecia nem notar quem estav ao lado, em seu mundo encantado. No trabalho tinham notado meu novo visual; pensavam que fazia entrevista em outras empresas, embora fosse funcionário concursado.

Chegou o fatídicao dia; era hoje.; tinha levantado cedo e chegado quarenta minutos antes do habitual do senhor desconhecido. Eu tremia por dentro e a mal pude tomar o café quente enquanto o esperava. Era chegada a hora; caminhei lentamente ao longo do passeio por fora da galeria, lá vinha ele, cheio de si e do mundo, marchava firme e impávido; hoje eu recuperaria minha dignidade, honra, lugar no mundo; eu não era um inseto, mas um ser humano que vive, pensa, tem ideias sublimes, gosto próprio, embora não reconheçam; estava chegando perto; a sua silhueta me intimidava, mas segui adiante; tive vontade de desviar, mas fechei os olhos , só mais dois passos, e ..., demos um encontrão; ele me fitou por dois segundos, mas me mantive firme; ele desviou uns dois centímetros e passou raspando por meu paletó. Vitória! Caminhei confiante ; todos notaram minha alegria no serviço e no local onde morava, dali em diante.