Dostoievskiana- Conto à Moda de Dostoievski

Dostoievskiana, conto à moda de Dostoievski

Acordei mal naquela manhã; não tinha dormido bem por causa do calor e mosquitos. A vizinha de cima gargalhou até às três da manhã; deve ter recebido seus amigos e, entre uma cerveja e outra, as vozes trovejam. Ao lado , o vizinho da esquerda deixava actv no futebol no último volume. O da direita, ouvia aquelas músicas de que só ele gostava.

Aquele edifício velho, no Baixo Augusta, era o único de acordo com minhas módicas condições.Quando construíram esses pardieiros, economizaram no material isolante e fizeram o maior número possível de cubículos para aproveitar o terreno. O despertador continuava a tocar; nem mais um minuto de sono. Levanto num pulo , tomo um café requentado num instante e saio serelepe em direção ao trabalho, não sem antes ranger aquelas escadas velhas dos três andares , cumprimentar de na vontade um ou outro na passagem e o porteiro sonolento e estremunhado, que abria um pouco a camisa por causa do calor.

São Paulo, naquela região, é uma profusão de gente correndo para o serviço, misturada aos ambulantes, prédios velhos e sujos, caindo aos pedaços, mendigos no chão , pichações; aqui e ali uma moça mais esbelta anda apressada e com medo ; algum pede dinheiro, outro tenta vender alguma coisa. A quitanda oferece frutas frescas ou nem tanto, como a alface amarelada.

Vou seguindo sonolento e com o estômago roncando , rumo à Paulista, onde pegarei a condução. Não tenho condições de pegar outra até lá, por isso economizo fazendo exercício.

Andei tão rápido, desviando dos mais variados tipos no caminho, fazendo reverência a alguns supostos conhecidos que me sobrou alguma tempo até tomar a próxima condução. Na Paulista, a coisa muda de figura; pessoas mais "chiques", moças com seus cãezinhos Lulu e bem vestidas. Paro em frente a uma vitrine entre a Augusta e a Paulista. Admiro-me de contemplar aqui oque nunca poderei comprar ou que só comprarei um dia depois de abrir um crediário em infinitas prestações a perder de vista e após refazer esse caminho inúmeras vezes ad nausean. Quando dou de cara com um sujeito bem vestido, com esses ternos bem cortados, apesar do calor que convidava a uma bermuda a que muitos não se incomodavam de usar. O sujeito não fez caso da minha existência.Não se mostrou agressivo, antes ignorou que um ser como eu habitasse o mesmo universo que ele.

Sacou o celular moderno do bolso e o atendeu; provavelmente era sua esposa ou amante, não sei.:" Sim, querida, tem aqui, um desses camafeus como vimos há tempos nos Champs Elisees". Aquele pedantismo me encheu de raiva por dentro , mas não mais do que sua atitude posterior, que irei narrar.Foi falando e apontando os objetos como se a ouvinte estivesse do lado:" esse....aquele, ah, não, esse sim".Por fim esbarrou em mim com certa brutalidade. Espera um "desculpe", "sinto muito " , ou coisa do gênero. Simplesmente me ignorou e saiu andando, falando ao celular do mesmo modo que o maluco falava sozinho.

A raiva tomou conta de mim; havia me transformado num simples inseto.Como se eu não fizesse parte da paisagem ou incomodasse.

(Continua)