Traumas

João Marcos e Marcelo estão em um barzinho.

João Marcos, mega empresário, é um homem de 45 anos e muito solitário. Em raras ocasiões vai a bazinhos ou restaurantes para esquecer um pouco a sua solidão e seu tédio. Está sempre acompanhado de seu assessor, Marcelo.

Chegam duas garotas conhecidas de Marcelo e eles as chamam para sentar.

Eles se apresentam e Laura cumprimenta João Marcos

-É um prazer conhecê-lo, João Marcos. (pegando sua mão o cumprimenta beijando seu rosto)

Ele se afasta rapidamente com expressão de desagrado.

-Desculpe. Pensei que podia cumprimentá-lo.

-Claro que pode. Não é nada pessoal. (desconcertado).

-Senti que você não gostou.

-Impressão sua. Quer beber alguma coisa? (chamando o garçom)

Ele diz:

-Você é muito linda. E me parece muito jovem. Você parece uma lady.

-Você é muito gentil.

-Gosto de olhar pra você. Que lindos estes olhos verdes. E que sorriso maravilhoso.

-Você está me deixando encabulada com tantos elogios.

-São elogios sinceros.

-A maioria dos homens não fazem tantos elogios.

-Não acredito em unanimidade.

-Claro. As pessoas são diferentes.

Continuam conversando.

Eles se encontram outras vezes. Ele sempre evita qualquer contato físico com ela.

Neste dia estão na casa que ela divide com sua amiga. Ela se aproxima dele e toca seu rosto. Ele se afasta bruscamente. Ela estranha e fica esperando uma atitude dele.

-Você é tão linda. Parece uma pintura. Toda linda.

-Ela se aproxima novamente dele e vai abraçá-lo. Ele se afasta novamente com expressão de desagrado.

-Qual é a sua? Se tem nojo de mim o que está fazendo aqui? Não vou admitir ser tratada assim. Não sou doente nem suja. Vá embora, por favor. Pra mim, chega.

-Não é nada disto, Laura. Não é nada pessoal. Não tenho nojo de você. Por favor, não pense assim.

-Qual é a sua então.? Vai ficar aí me olhando? Será que eu só encontro gente perturbada?

-Sente-se aqui comigo, mas não toque em mim por favor. Vou lhe contar minha história.

Ele fica calado. Ela diz:

-Estou esperando você me contar a sua história.

-Laura, é difícil pra mim falar. Mas basicamente, eu não suporto ser tocado por ninguém. Não consigo ter nenhum tipo de contato físico com ninguém. Quando alguém me toca eu sinto asco. Até um aperto de mão é difícil pra mim. E está ficando cada vez mais difícil pra mim alguém me tocar. Como você vê, não é nada pessoal com você.

-Não entendo você. Por que quis me conhecer, sair comigo e porque aceitou o convite de vir aqui?

-Eu sou um homem solitário. Não tenho família. Meu pai já faleceu. Com este meu problema eu afasto as pessoas, ninguém entende. Como você, pensam que é orgulho ou arrogância. E não é nada disto. E eu me encantei com você desde a primeira vez que lhe vi.

-Inacreditável. Fora isto você leva uma vida normal? Trabalha, dirige, se diverte?

-Trabalho, sou empresário Não me divirto. Raramente saio, como aquele dia ou das outras vezes que saímos. Minha vida não é muito fácil. Sou tão pobre que a única coisa que tenho é dinheiro. Se é que você me entende.

Laura ri ironicamente.

-Como a vida é estranha, não é? E eu estou levando uma vida que eu nunca quis pra mim porque não tinha dinheiro nem para comer.

-Você não merecia isto.

-Você nunca pensou em procurar tratamento?

-Tratamento? Eu não me sinto doente.

-Uma terapia com psiquiatra, psicólogo.

-Acha que eu preciso? Não me julgo louco.

-Não diga isto, João Marcos. Você é muito inteligente e esclarecido para achar que só os loucos precisam de psiquiatra e psicólogo.

-Tudo bem. Já pensei nesta hipótese, mas tenho medo do que posso descobrir.

-Não é melhor descobrir mesmo sendo doloroso do que viver assim?

-Não sei. Ainda não tive coragem. Quem sabe um dia.

-Posso fazer uma pergunta?

-Sim. Se não achar conveniente, não respondo.

-Você nunca transou com ninguém?

-Já tentei duas vezes, há muitos anos. Mas foi um vexame. Senti nojo, senti mal e vomitei. E nem tinha bebido nada.

-E nunca mais tentou? Nunca teve uma namorada?

-Não. Eu me sinto muito solitário. Gostei muito que você. Queria muito que você me entendesse e me fizesse companhia. Sei que não é fácil conviver com uma pessoa assim. Principalmente para alguém tão jovem como você.

-Sinceramente, eu gostei muito de você também. Mas acho que para você viver qualquer relacionamento é preciso você se tratar. Se você se dispuser a se tratar eu prometo lhe ajudar.

-Você tem muita maturidade para seus vinte e poucos anos.

-A vida me obrigou a isto. Não tive alternativa senão adquirir maturidade e seguir em frente. Mas você ainda não me respondeu se está disposto a se tratar.

-Eu tenho que pensar. Eu vou embora. Eu ligo para você.

-Tudo bem. Eu aguardo.

Eles continuam se encontrando e João Marcos tem muitas crises de ansiedade. Decide finalmente se tratar.

Começa fazer sessões de hipnose com um psicólogo. Começa a relembrar seu passado. Segue o tratamento até que numa sessão ele revê, aos sete anos, o ponto crucial de seu trauma. Fica muito agitado e começa a se sentir mal ao fim da sessão João Marcos corre para o banheiro.

Volta trêmulo, pálido e transpirando muito. Senta e chora convulsivamente.

Aos poucos vai melhorando, se acalmando.

Saindo ele liga para Laura:

-Oi, Laura! Acabei de sair do psicólogo e estou péssimo. Preciso falar com você

-Venha João Marcos. Eu lhe aguardo

Ele chega na casa de Laura. Olha pra ela, corre e a abraça chorando muito.

Ela fica surpresa por ele a abraçar. Não entende o que está acontecendo.

-Sente-se aqui João Marcos. Acalme-se pra gente conversar.

Ele senta-se e vai se acalmando. Ela passa a mão pelos cabelos e rosto dele.

Depois de um tempo ele começa a falar:

-A sessão de hoje foi muito difícil, mas clareou tudo para mim.

-Que bom que clareou. Fiquei muito surpresa quando você chegou aqui e me abraçou. Eu toquei seus cabelos, seu rosto e você ficou tranquilo.

-Eu lhe abracei? Você me tocou?

-Não se lembra? Foi agora há pouco.

-Não percebi. Agora eu sei o que me aconteceu. Eu vi tudo. Desbloqueou a minha memória. Aquele monstro que namorava minha mãe me…

Ele fica trêmulo, pálido, transpira muito.

-Acalme-se João Marcos. Eu tenho todo o tempo do mundo pra lhe ouvir.

Ele olha pra ela com lágrimas nos olhos.

-Ele me estuprou.

-O quê? Isto explica tudo. Este trauma, este asco de lhe tocarem.

-Mas hoje eu botei tudo pra fora. Eu vomitei muito lá no consultório. Como se eu fosse vomitar até as minhas vísceras. Vomitei todo o meu ódio, todo o meu asco, todo o meu nojo por aquele monstro imundo. Vomitei toda a sujeira que ele deixou em mim, toda a humilhação e horror que eu passei. (chora)

-Chore, João Marcos. Coloque tudo o que está sufocado pra fora.

-Eu me lembro de tudo agora. Naquele dia, minha mãe tinha saído. Ele já vinha me assediando há muitos dias. Tocando meu corpo, baixando minhas calças e a cueca algumas vezes. E neste dia estávamos sozinhos e ele fez o que fez. Depois me ameaçou para que eu não contasse para ninguém. Mais tarde meu pai me pegou para o fim de semana com ele. Eu estava assustado e tenso e ele perguntou o que estava acontecendo. Eu não falei nada. Mais tarde, eu estava tomando banho e ele estava lá no banheiro comigo. Quando eu fui me lavar, escorreu sangue do meu ânus. Meu pai ficou assustado e perguntou o que havia acontecido. Eu não queria falar e fiquei nervoso. Ele então me pressionou e eu sem nem saber direito o que tinha acontecido, contei para ele tudo que aquele monstro me fez. Eu chorava muito e pedia para meu pai me proteger. Ele então fez a denúncia contra aquele monstro, prestou queixa. Depois ele me levou num lugar para um médico me examinar, provavelmente o exame de corpo de delito.

Nós fomos embora. Mais tarde minha mãe chegou lá dizendo que eu e meu pai armamos para o namorado dela ser preso. Que foi uma covardia, falou um monte de impropérios. Meu pai disse que jamais permitiria que eu voltasse a viver com ela. Ela disse que ele estava fazendo isto para não ter que pagar pensão. Foi um horror. Mas o juiz deu a guarda para o meu pai e eu nunca mais voltei a morar com minha mãe. Fui visitá-la algumas vezes, mas sempre acompanhado de uma assistente social. Depois ela começou namorar um outro homem e aos poucos foi se afastando de mim até nunca mais me visitar.

Este monstro permaneceu preso pois já tinha outras denuncias de estupro contra ele. Era um pedófilo e já tinha estuprado meninos e meninas. Ele foi julgado e condenado. Dois anos depois suicidou-se na cadeia. Minha mãe me acusou de ser culpado disto. Eu fiquei mal e tinha pesadelos terríveis. Fui ficando cada vez mais arredio e só aceitava que meu pai me tocasse, me abraçasse ou fizesse um carinho em mim. Convivi com esta culpa toda a minha vida, embora a lembrança estivesse bloqueada. Minha mãe e este monstro destruíram minha vida.

-Não, João Marcos. Você pode refazer sua vida. Você pode se livrar deste trauma e ainda ser muito feliz. O que passou, passou. Foi horrível, eu posso lhe entender e você sabe disto, mas é preciso superar. Agora você já sabe que nem todas as pessoas são sujas, que seu pai foi bom para você, que ele lhe deu amor, carinho, lhe educou e viveu para você.

-Sim. Meu pai foi o meu melhor amigo. Mas eu tinha um impressão que se eu me tratasse eu iria descobrir que ele era o vilão e eu não queria isto. Agora sei que ele foi o melhor pai do mundo e que meu ego e meu inconsciente me sabotaram o tempo todo.

-Isto aconteceu para que você pudesse sobreviver. Mas agora você já sabe de tudo. E você e seu pai sempre foram amigos, não é?

-Sim. Ele era um grande homem.

-Você está mais calmo agora?

-Estou. Muito chocado mas estou mais calmo. Posso ficar um tempo aqui com você?

-Claro. O tempo que precisar. Fiquei feliz por você me abraçar.

-Nem percebi eu lhe abraçando.

-Posso lhe abraçar?

-Pode tentar.

Ela se aproxima e toca seu rosto. A principio ele se esquiva, depois deixa que ela o abrace.

-Fico tão feliz em poder lhe abraçar, tocar em você.

-Eu também. Queria tanto isto.

-Agora você só vai melhorar. Sabe que só vai ficar bem mesmo quando trabalhar o perdão, não é?

-Eu perdoar estes monstros? Eles não merecem

-Eles podem não merecer, mas você precisa perdoar. Não por eles, mas por você. Pra você se libertar totalmente disto, só quando você perdoar. Eu nem devia estar lhe falando isto. O psicólogo vai lhe falar.

-Eles não merecem perdão.

-E você vai conviver com este ódio a vida toda? Não é um peso desnecessário?

-Não tenho condições de pensar nisto agora.

-Desculpe. Não devia ter falado nisto.

-Não tem que se desculpar.

-Agora é rumo a uma vida nova cheia de alegrias.

-Você vai fazer parte desta vida nova?

-Quem sabe? Eu quero muito.

-E é tudo o que eu quero. Foi por você que eu decidi me tratar, é por você que eu estou enfrentando tudo isto. Eu quero estar com você sem todos os meus traumas e livre para lhe amar como você merece.

Ele esboça um sorriso e faz um carinho em seu rosto. Ela sorrindo

-Que maravilha receber seu carinho. Vamos caminhando passo a passo até você se libertar completamente.

Beija-o de leve.

Sabem que têm uma vida pela frente para viver o amor que cresce entre eles.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 15/04/2021
Código do texto: T7232816
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