NA MOOCA

NA MOOCA

- Aristeu Fatal

O bairro da Mooca, em São Paulo, como se sabe, é uma região onde se sobressai a colônia italiana. Lá são encontradas inúmeras atividades relativas ao povo da bota, tais como, fábricas de sapatos, metalúrgicas, confecções, barbearias, sapateiros, alfaiates, e na área gastronômica muitas padarias típicas, cantinas ou tratorias, mercearias, lanchonetes, pizzarias, quase todas, ou todas, familiares. É o caso da Di Cunto, por exemplo, famosa pela fabricação de massas, salgados e doces típicos. E, também, tem um clube profissional de futebol, o simpático Juventus, considerado o segundo time dos paulistanos. Seu estádio se encontra na rua Javari, e possui um enorme clube social, em outro local do bairro.

Seu Giuseppe Carnelutti, conhecido mais como Beppo, é dono de um armazém de secos e molhados, típico das pequenas cidades da Itália, e muito comum aqui no Brasil, para quem viveu na primeira metade do século passado. Até hoje mantém a tradição, há mais de 80 anos. Tem um balcão de madeira, com o tamanho quase da largura do salão, possuindo uma pedra de cobertura, branca como uma folha de papel. Ali se encontram vidros com doces, balas, a máquina registradora, daqueles tempos. Fora do balcão se encontram sacos de arroz, feijão, batata, uma barriquinha com peixes salgados, e outros mantimentos. As prateleiras, com conservas, azeites, vinhos, macarrão, biscoitos, etc. Linguiças, mortadelas, salames, e outros, pendurados.

Como é tradicional nesses estabelecimentos, na parte de trás, há um salão menor, onde fica o tonel de vinho da casa, vendido picado, e igualmente, uma mesa rústica, com banquetas, onde alguns fregueses tradicionais frequentam nos fins de tarde, e alguns aposentados, o dia inteiro, para beber vinho e jogar sueca, ou truco.

Entre esses frequentadores estão, o Mário, alfaiate, o Juca, sapateiro, o Dr. Pedro, advogado criminal, o Décio, escriturário, e o Genésio, marceneiro aposentado. Esporadicamente, aparecia um ou outro conhecido. Ah, estava me esquecendo, havia um sujeito esquisito, sempre sisudo, o Armando, que não tinha profissão, e vivia sempre bem arrumado, e era figura encontrada no local, o dia todo.

Às vezes, após o fim do encontro deles na vendinha do Beppo, como era chamada, o Décio e o Dr. Pedro, ficavam conversando em separado, falando baixo, o que causava certa desconfiança aos demais amigos. Até que, certa ocasião, já de noite, quando o armazém estava de portas fechadas, Genésio e o Seu Beppo viram uma caminhonete na porta do Décio, vizinho de poucos metros, alguém descarregando umas caixas, como de sapato, de modo furtivo. Ficaram muito intrigados com a cena. Além do mais, Décio não podia ter a vida que levava, sendo um simples escriturário.

- Cléa Magnani

O fato estranho, foi comentado por Beppo, quando Mário, o alfaiate passou pela mercearia para comprar um belo codeguim que sua Giuseppina havia encomendado para colocar no feijão. Ao chegar em casa, Mário contou para a esposa sobre a tal caminhonete. Giuseppina era muito amiga de Concetta, sogra de Juca, e nem esperou o fim da história. Saiu enxugando as mãos no avental e chegando ao muro que dividia as duas casas, na rua Javari, gritou: CONCETTINAAAA! Venite quà! – E passou adiante a desconfiança de Beppo sobre o “contrabando” que ele e Genésio haviam visto sendo descarregado na casa daquele “smorfioso” do Décio, que olhava para todo mundo de cima pra baixo, como se fosse o dono da rua! Mas que agora seria vigiado dia e noite e teria de provar com Nota Fiscal o que guardavam aquelas caixas suspeitas... – O que seria??? – CONTRABANDO!!! Na certa! Concetta, tinha um tique nervoso, piscava um olho. Ao acabar de ouvir a notícia, piscava como um luminoso de porta de garagem de prédio, repuxava a boca para o lado do olho piscante, e nem conseguia falar de tão assustada. Eram vizinhos de um CONTRABANDISTA!!! Giuseppina deixou a amiga no muro, e correu em busca do velho telefone de disco. Aflita ligou para a casa de Genésio. – Alô seu Genésio? Buongiorno! A Mafaldinha se encontra, por favor? É a Peppina. – Quando Mafalda atendeu - Mafaldinha do Céu! Nem te conto!!!... Tá sentada? - e Giuseppina despejou a falar, sem dar tempo de a amiga entender.- Deve ser coisa da Máfia! Um caminhão de caixas enormes! Precisava de dois pra carregar! Um monte! Será que eram armas? Nossa Senhora Achiropita! Acabaram com a Mooca! Não se tem mais sossego! É O FIM DO MUNDO!- O codeguim ficou sobre a mesa, e aquele dia não teve almoço na casa do Mário. De amiga em amiga, a Mooca inteira já sabia do "contrabando'', da “Máfia”, do “FBI”que já “havia sido visto” rondando pelas ruas, e que o Mundo iria se acabar. No dia seguinte, Dr. Pedro passou pela marcenaria de Genésio, para encomendar um baú, desses que parecem uma caixa comprida, para ele colocar no seu jardim de inverno, mas queria daqueles bem resistentes, com fechadura e cadeado. Genésio agradeceu porque lhe daria um bom dinheiro. Na hora do almoço, comentou com Rosina, sua esposa, sobre a encomenda. Rosina deixou cair o garfo enrolado de spaghetti, tomou um gole de vinho, e correu para o telefone sem terminar o almoço. - Rosina! - chamou Genésio - e o meu cafezinho?

- Toma no bar, Gegê! Estou muito ocupada! - respondeu Rosina, já discando para Giuseppina.- É a Peppina? Acertou na mosca! Confirmado! Já encomendaram um baú pro meu Gegê pra esconder a muamba... Dio Mio!!!!

- Alberto Vasconcelos

Naquela época, a Hospedaria do Brás estava sempre com a lotação esgotada. Pessoas de todas as nacionalidades vinham para o Brasil fugindo da miséria que fustigava os países, principalmente os da Europa. Na Rua Visconde de Parnaíba que separa, ou une, a Mooca ao Brás as famílias residentes colocavam as cadeiras nas calçadas para conversar e ver o movimento dos imigrantes que permaneciam hospedados até arranjarem emprego que era geralmente negociado, por baixo dos panos, com Armando, aquele sujeito caladão da vendinha do Beppo. Nas noites quentes do verão, enquanto as crianças brincavam na rua até a hora de irem para a cama, o Dr. Pedro, sentado na varanda, jogava gamão com o Padre Malta que fora seu colega no curso primário e foi numa dessas conversas, em que a situação precária daqueles imigrantes era sinônimo de lamentação, que o doutor teve a ideia de montar uma sapataria popular no salão onde funcionou a mercearia de Dom Vito. A priori era uma excelente alternativa para a viúva que receberia aluguel e, considerando o movimento da rua, não faltariam clientes para os sapatos usados ou de 2ª escolha. Mas havia um entrave. Ele era advogado criminalista, atuante no fórum da capital, não ficava bem ele aparecer como comerciante à frente de loja ou como atendente experimentando botinas ou qualquer outro tipo de calçado, agachado, diante dos fregueses. Depois de dar tratos à bola, viu em Décio, o sócio ideal. Ele era escriturário, conhecedor das leis, da contabilidade comercial e das obrigações para com o fisco. A escrituração dos livros que ele fazia em casa, poderia ser feita na sapataria e, se o movimento viesse a exigir, eles poderiam contratar um balconista, quem sabe até um daqueles imigrantes. A sociedade foi acertada entre os dois e o doutor se encarregou de fazer os contatos com os fabricantes de calçados de Franca, no interior de São Paulo e com os de Novo Hamburgo e São Leopoldo no Rio Grande do Sul. A sabedoria popular ensina que “o segredo é a alma do negócio” e os sócios combinaram só contar a novidade para os amigos quando tudo estivesse pronto e as encomendas devidamente entregues. A família do doutor nem tinha conhecimento e Francesca, esposa do Décio, foi obrigada a jurar pela alma da mãe falecida que não diria nada, a ninguém, ninguém mesmo, até que chegasse o dia da inauguração. Sob a alegação de que não tinha ninguém durante o dia para receber as mercadorias, os transportadores fizeram as entregas à noite na casa do escriturário. No dia da inauguração, a loja enfeitada com bandeirolas e flores de laranjeira para perfumar o ambiente, com as pessoas entrando para admirar as novidades, era visível a cara de reprovação das senhoras reunidas na calçada da loja, comentando indignadas o silêncio de Francesca até aquela data. Como ela pôde não dizer nada? Por que escondeu de nós, suas amigas, algo tão importante? Baldracca vecchia, maledetta!

GLOSSÁRIO:

2ª escolha = mercadoria com pequenos defeitos de fabricação.

Baldracca = puta, vagabunda

Buongiorno = bom dia.

Codeguim = linguiça típica da Itália

Maledetta = maldita

Smorfioso = feio, de aparência desagradável

Vecchia = velha

Vendido picado = vendido à granel

Aristeu Fatal, ALBERTO VASCONCELOS, ARISTEU FATAL, CLÉA MAGNANI CLÉA MAGNANI e GABRIEL VIT
Enviado por Aristeu Fatal em 13/04/2021
Código do texto: T7231301
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