ERA UMA VEZ UMA FAMÍLIA

Sílvia Grant

Era uma vez, uma família, daquelas que vemos nos filmes de sessão da tarde, sabe? Criados com carinho e desvelo. Com os pais sempre presentes, atentos à uma educação com amor, obrigações e deveres. Cada filho, tendo respeitada a sua personalidade, tiveram aparentemente uma infância e uma adolescência feliz. Rodrigo, primogênito da família de três filhos, responsável e independente, deixava agora a casa dos pais. Decidira morar sozinho. Já era hora, no auge de uma bem-sucedida carreira de médico, com horários conturbados por imposições de plantões, chamados de emergência madrugada afora, aspirava por uma vida com mais privacidade. Era justo. Júlia, a caçula, já estava casada e trabalhando como arquiteta na firma de engenharia de seu marido, no sul do país, portanto, pouco tempo dispunha para visitar seus velhos pais. Limitava-se a ligar duas vezes por semana para colocar as notícias em dia. Assim era a vida... João Paulo, o segundo filho, já há alguns anos partira em busca de novos horizontes. Mal completara o ensino médio e empregara-se em um cruzeiro para a Europa e hoje, depois de vários anos, tudo o que se sabia dele eram através de breves e-mails e fotos risonhas em verdadeiros paraísos banhados pelo mar, pelo sol ou por fotos de lugares cobertos por tanta neve que, aos olhos de seus velhos pais, mais pareciam montanhas de marshmallow. Como esperavam ansiosos por essas notícias, como ficavam orgulhosos dessas fotos! O casal, João Pedro e Eda, racionalmente, compreendiam que seus filhos haviam crescido e tomado rumo próprio, mas, como a maioria dos pais, naturalmente se ressentiam pelo fato de terem ficado com o ninho vazio. João Pedro tentava apaziguar seus próprios sentimentos na tentativa de poupar Eda de maiores preocupações. Na verdade, apesar de ter levado uma vida regrada e tranquila, seus setenta e muitos anos já começavam a transparecer através de sua voz mais cansada e na fluidez de suas ideias que nem sempre acompanhavam o raciocínio, antes tão lúcido e rápido.

Aristeu Fatal

De fato, alguma coisa deveria ser feita, já que a situação dos pais era muito delicada. João Pedro, um cidadão simples, que com sua oficina de conserto de eletrodomésticos, excessivamente sério no que fazia, progrediu de forma surpreendente, tornando-se representante oficial de várias indústrias do ramo, para toda região da cidade onde era estabelecido, e onde residia. Tornou-se um homem de posse, conseguindo amealhar uma bela fortuna, razão pela qual pode formar, em curso superior, dois de seus filhos, e viver uma vida tranquila. Dos três filhos, o único que poderia resolver o problema, pois morava na mesma cidade, seria Rodrigo. Mas, como? Estava ele, nesses tempos, iniciando o namoro com Cláudia, uma psicóloga que trabalhava no hospital onde ele dava plantão. Ela, além de clinicar, ministrava aulas na faculdade de psicologia na UNESP. Famosa. Rodrigo comentou sobre o problema que vinha lhe atormentando, e ela ficou de tentar uma solução. Mas, antes, combinou com Cláudia para irem à casa de seus pais, a fim de apresentá-los. Foi uma ótima ideia. De ambas as partes houve uma grande atração. Principalmente por parte do casal. Então, Cláudia sugeriu ao Rodrigo, que ela iria duas ou três vezes por semana na casa de João Pedro e Eda, onde, entre um cafezinho e um bolo de fubá, passaria a bater papo com os futuros sogros, usando algumas técnicas que havia inventado, sobre casos mais ou menos idênticos. Assim foi. Familiarizada com os idosos, passou a tratar dos dois. Comentou sobre o texto de Gibran Kalil Gibran, quando ele trata do tema de filhos, no livro O Profeta. “Vossos filhos não são vossos filhos”, a famosa frase. Mostrava fotos de João Paulo, naqueles maravilhosos lugares, sempre explorando o rapaz em poses que demonstravam estar ele feliz, de bem com a vida. Júlia, por sua vez, necessitou vir à sua cidade, em busca de documentos, consultas médicas e outros compromissos. Anunciou que estava grávida de três meses, e iria ficar uns dez dias junto aos pais. Tudo isso, e mais a notícia de que João Paulo logo viria ao Brasil, para a temporada de cruzeiros do próximo verão, serviram para que o casal viesse restar em paz.

Cléa Magnani

Para os três filhos, os pais ainda eram como os conheceram. O pai, em sua oficina, a mãe muito solícita, tornando aquela casa onde viveram por tantos anos, um lugar muito agradável e acolhedor. Mas o tempo havia passado. Quando Julia ligava, não via no rosto da velha mãe, e as rugas de preocupação que Eda vinha apresentando nos últimos meses. Rodrigo, desde que foi nomeado Diretor do hospital passava ainda mais tempo no trabalho. Os poucos momentos de folga, dedicava à Cláudia, com quem já vivia, e pretendia se casar, assim que o bebê nascesse. João Paulo, iria chegar depois de tantos anos, e era o mais desligado dos problemas da família. E chegou o grande dia. Eda preparou um almoço com tudo o que sabia que “suas crianças” gostavam. Enfeitou a casa com flores e se preparou para a recepção aos filhos. João Pedro perguntou inúmeras vezes que horas eram, e a que horas chegariam; havia se barbeado, mas Eda precisou deixar o que fazia, para corrigir trechos do rosto dele onde a gilete nem havia passado. Terminou de arrumá-lo, penteou seus cabelos e voltou para suas panelas. Tudo deveria estar perfeito naquele almoço em família. Rodrigo e Cláudia foram os primeiros a chegar. Quando olhou para o pai, o experiente médico diagnosticou num relance o estado de demência em que ele se encontrava, e sua mãe nem havia percebido. Júlia conversava animadamente com Cláudia, ela chegou com seu marido e seus dois filhos que ainda não conheciam os avós, e tinham muito o que contar. A campainha soou repetidas vezes como costumava acontecer quando João Paulo chegava em casa. Ao abrir a porta, Eda atirou-se nos braços do filho que quase não reconhecia mais, O rapaz levantou a mãe nos braços, rodopiou e a colocou no chão sob uma cascata de risos. Chamou da porta: - Jean, viens! C’est ma famille. E voltando-se para todos: - Família, este é Jean meu marido. A surpresa foi geral. João Pedro ficou pensativo e nada disse. Eda desmanchou o riso que tinha no rosto ao rever o filho. Um silêncio constrangedor se fez ouvir. Os irmãos estenderam as mãos para o cunhado, mas era tudo muito estranho...

Alberto Vasconcelos

Os primeiros momentos dessa revelação, inconveniente demais, para uma família com rígidos princípios, foram como se o mundo tivesse parado. O mal-estar era mais que visível nos rostos de todos até que, João Paulo desfez a brincadeira de mau-gosto. Jean era um marroquino, seu colega de trabalho que sempre desejara conhecer o Brasil e, em férias, aproveitou a oportunidade da vinda do colega brasileiro para ser seu guia. Findo o almoço, João Paulo contou a grande novidade. Iria casar-se com Pietra, filha do armador grego Atenágoras Katsaros, para o qual, começara a trabalhar como encarregado da correspondência internacional por ser fluente em línguas que a maioria dos intérpretes desconhece. Durante o cruzeiro ele fora contratado para ser o acompanhante inseparável da senhorita. E esses dias de convivência constante despertou o amor que foi aceito pelo velho milionário, quando mostrou a João Paulo o dossiê com os relatórios das andanças do jovem casal e as fotografias dos beijos ardentes que ele havia encomendado ao detetive “discreto e invisível”. Seu amor e dedicação conseguira anular a melancolia que Pietra sentia por não poder fazer tudo o que as pessoas de sua idade faziam pelo fato de ser filha de quem era. Seis meses depois do encontro em sua casa no Brasil, com a família reunida e com o coração transbordando de felicidade, Eda e João Pedro, parcialmente recuperado pelo intenso tratamento, assistiram ao casamento do filho do meio. No grande terraço da mansão na ilha de Kos, dourados pelos raios do sol que aos poucos se escondia nas águas do Mar Egeu, os noivos formavam um casal belíssimo. João Paulo, um deus grego, com os cabelos açoitados pela brisa morna do entardecer. Pietra, esbelta, tão linda quanto Helena, esposa de Menelau, cujo rapto motivou a guerra de Tróia, parecia uma vestal envolta no véu de renda renascença que Eda lhe dera e que fez questão de prender em seus fartos cabelos negros. Eles dançaram hasapiko e ajudaram aos noivos a quebrar pratos na porta da casa para afugentar os maus espíritos. Tudo era tão encantador que se alguém fosse narrar, deveria começar assim; era uma vez uma família...

GLOSSÁRIO

Hasapiko – dança folclórica com movimentos rápidos e lentos, popularizada como “Zorba’s Dance” no filme Zorba, o Grego, 1964

Jean, viens! C’est ma famille. – tradução Francês/ Português, Venha João, esta é a minha família.

OBRAS CITADAS

HOMERO: Ilíada, tradução de Trajano Vieira. 1ª edição - Editora 34/SP, 2020

GIBRAN, Gibran Kalil - O Profeta, 1ª edição - Editora Madras/SP, 2009