CORONA VIVOS
Abre os olhos. Como se despertasse de um sonho dentro de outro. Sonhos nublados, mas repletos de significados. Signos de uma linguagem dedicada ao luxo da sobrevivência. Tinha sentido o sentido dela junto ao corpo dele num abraço para a eternidade. Sofia é tão jovem e mal sabe quando a velhice chegou. Envolta em andrajos que ganhara de alguma campanha beneficente (como tudo o que a tem mantido viva), cabelos longos, loiros e áridos como a última seca que enfrentara à procura de um lugar decente para dormir. Olhos claros, pele opaca e marejada nas enchentes enfrentadas a seco durante as ruas irregulares da grande cidade que ainda não conhece direito, embora seja nativa.
Sofia abre os olhos como se abrindo ao sol que nunca chega, mas persiste em querer achá-lo, muito mais agora após encontrar seu amado que não vê há meses. O vírus dera um fim rápido à sua família e a jogara nas ruas, para amizades regadas a álcool e sexo desregrado em troca de comida e um espaço para se abrigar das intempéries das estações da vida. Sobretudo do sol na cabeça, que não tem nada a ver com seu lugar ao sol. A cabeça da humanidade pesa, desde quando Adão quis ter todo o conhecimento para se tornar deus.
Sofia desperta, ainda bêbada na lembrança, mas precisa correr para a fila do pão com café, mais uma cortesia dos civilizados aos selvagens, ela tem de correr porque não sabe quando terá a próxima refeição. Enfia-se no rosário humano, sempre automática no uso da máscara para não se contaminar, embora às vezes pense na morte como uma dama doce vestida de igualdade: que dá nome e identidade aos seus escravos.
Sofia mastiga o pão desconfiada, pois da última vez lhe puxaram o alimento das mãos, teve de esperar a sopa noturna, distante vários quarteirões, para conseguir dormir. Mas na memória o amado arranca-lhe um suspiro. Um amor surgido de gentilezas. Ele não a vê como um objeto. Protegeu-a de um ataque sorrateiro na madrugada, tentativa de estupro, quase lhe arrancaram uma das orelhas num golpe de faca do qual se desviara, passara de vítima a ofensor, já que arrancara o coração dela. A alma de Sofia foi do Hades ao Paraíso. A partir daí seus dias se abriram à uma atmosfera esquisita, estrangeira, indiscriminada, excitantemente cotidiana.
Sofia engole seu pão e seu café. Corre ao farol para vender suas bugigangas, precisa sobreviver à pandemia. Seu amor se perdera dela numa controvérsia do abrigo onde dormiriam juntos. Policiais o levaram num carro sem placa para algum lugar. Mas Sofia o reencontrou em seu último sonho, por isso entende que precisa manter seus olhos abertos para rever o solstício em meio ao eclipse mundial: a face iluminada do único homem que a ensinou o amor.