Conto das terças-feiras – Deixando a casa da vó

Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 13 de abril de 2021.

A expectativa de completar dezoito anos era tanta, que a imaginação tinha o poder de transportá-lo para diferentes lugares do planeta terra. Uma excitação percorria-lhe o corpo num frenesi intenso. Às vezes caía num vácuo que ficava difícil de retornar. A cada retorno aumentava o desejo de deixar aquele ambiente. Era um pensamento só, crescer sem os cuidados de quem sempre fizera o papel de sua mãe. Órfão de pai e mãe, fora morar com a avó materna desde os sete anos. Antes vivia livre, percorrendo as vielas da comunidade onde morava, não dava satisfação para ninguém, nem mesmo para os pais, quando ainda vivos, já que deles não recebia atenção nem carinho.

Foi recebido pela vó, moradora de outra cidade, com os cuidados que só uma avó dispensaria a um neto que acabara de sofrer um grande golpe, assim pensava ela. Seu quarto fora preparado com esmero para recebê-lo, tudo novo, primeiro impacto, não tão bem recebido pelo novo ocupante. Ficara morando ali por dez anos e onze meses, sempre sob a supervisão carinhosa, mas severa, da grande mãe, como ele a chamava. Ir para a escola, tirar boas notas, coisa difícil de acontecer, almoçar na hora certa naquela mesa posta com dois pratos, talheres, copo para água e, no final, sobremesa feita em casa com esmero e carinho. Ocasiões silenciosas e sempre em companhia da velha senhora, todos os dias sempre a mesma rotina.

Sabia que aquilo era a maneira carinhosa dela demonstrar o amor que sentia por ele, mas isso nunca o agradara. Achava que tais atitudes retardariam o seu crescimento e a formação de sua personalidade, embora não soubesse como isso se dava. Só queria liberdade para decidir o que fazer, como fazer e a que horas. Nunca dera ouvidos aos seus conselhos, ainda que não ousasse confrontá-la, pois sabia que ela agia assim para o seu próprio bem. Aquelas amarras ele as desataria quando completasse dezoito anos, e faltava pouco. Já imaginava colocando seus poucos pertences em uma pequena mala: um laptop, ganhado dela como presente no Natal, uma gaita de boca, que aprendera a tocar com o mestre Zuza, um velho vizinho da vó, três calças, uma bermuda, quatro camisas, um tênis, uma sandália japonesa e quatro cuecas bastante usadas. Não usava meias, não gostava. E o seu inseparável celular, também presente da grande mãe. Na mochila, sonhos em abundância.

Ao comunicar o seu desejo em partir, andar pelo mundo afora, a senhora caiu em prantos, mas não disse uma só palavra, sabia que um dia isso iria acontecer, só não esperava tão cedo assim. Naquela noite não dormira, passara a noite em claro, às vezes chorava, outras orava, outras ia até o quarto do garoto espiar se ele estava dormindo bem. Dormia a sono solto!

Pela manhã foi para o fogão, fez um bolo, era aniversário do neto, finalmente os dezoito anos chegaram. Ele ainda dormia, preparou a mesa, como nos outros dias, pão, café, leite, queijo um bolo confeitado, duas xicaras sobre pires, tiradas da cristaleira, só usadas em dia de comemoração. Sobre o bolo dezoito velinhas azuis. Ela pretendia cantar os últimos parabéns, para aquele que lhe fizera companhia e acalentara a sua solidão, mesmo que de modo não usual, por onze anos seguidos. Ela ficara viúva antes mesmo de sua chegada.

Inquieta, pois o neto nunca passara dormindo das nove horas da manhã. Foi até o quarto por duas ou três vezes, ele continuava enrolado em um lençol branco até à cintura, peito desnudo e com um belo sorriso de satisfação. Ela pensou:

— Como é lindo esse meu neto! O que será dele por aí sem os meus cuidados? Quem lhe forçará a tomar seus remédios? É ainda uma criança, não sabe nada da vida. Vou sentir muita falta dele.

Sem fazer barulho a velha senhora encostou a porta do quarto e foi sentar-se à mesa, arrumando aqui e ali o que estava sobre ela. Pensou em colocar uma foto do garoto, na idade que chegara à sua casa. Abriu uma gaveta do seu guarda-roupa, tirou uma velha caixa, cheia de fotos e buscou a que procurava. Pegou-a e levou-a aos lábios beijando-a.

— Desde criancinha já era lindo esse meu neto, apesar de muito magro. Chegou nessa idade, com sopro no coração, cardiopatia congênita, um perigo. Vai saindo um belo rapaz – pensou alto a avó chorosa.

Já passava das doze horas quando ela retornou ao quarto para verificar porque sono tão forte. Nessa hora percebeu que havia algo anormal. Chegou-se mais perto da cama, notara que ele não mais respirava. Aos prantos caiu sobre o corpo inanimado do neto, ficando ali por algumas horas. De coração fraco, ela teve um ataque cardíaco. Sem ninguém para ajudá-la, pereceu. Ao lado da cama uma pequena mala de viagem, com cadeado ainda aberto, e uma mochila vazia de futuras aventuras.

No outro dia os vizinhos, perceberam algo estranho, a casa encontrava-se completamente aberta, dona Gertrudes ainda não aparecera para molhar suas rosas, alguém resolveu investigar o que isso implicava. Uma pessoa entrou e pela porta do quarto do garoto, semiaberta, deu de cara com os dois corpos, com semblantes aliviados, parecendo estarem libertos e felizes.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 13/04/2021
Reeditado em 13/04/2021
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