Conto das terças-feiras – Marieta fonfom
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 6 de abril de 2021.
Quem nunca conviveu ou teve conhecimento de personagens pitorescas de sua cidade? Segundo alguns dicionários da língua portuguesa, o pitoresco é aquilo que é excêntrico, curioso, bizarro, ou mesmo engraçado e cômico. Geralmente esses personagens são conjecturas maldosas sobre a condição humana, que podem ser tanto de natureza física quanto psicológica. Este cenário é mais perceptível em cidades menores, cujo corpo social encontra-se mais intimamente ligado, formando, a partir de parentescos e amizades afins, um conglomerado de pessoas.
Marieta, antes uma moça medianamente bonita, elegante, transformou-se em uma pessoa de aspecto repugnante, sendo rejeitada até pelos próprios irmãos, já não tinha pai e mãe. A repulsa vinha de sua aparência grotesca, pálpebras enrugadas que quase se fechavam dando a aparência de estrabismo, quase sem lábios, sobrando um pequeno orifício que só lhe permitia a entrada de uma colher de chá. Alta, macilenta, braços finos e compridos, sem cabelo, por causa das intervenções cirúrgicas malfeitas a que fora submetida, queloides e pus eruptivo eram vistos constantemente sobre sua face, limpado sempre com um pano branco sempre alvejado, que também servia como tapa-boca.
A jovem passou a ser conhecida como quatro olhos ou fonfom. A causa fora uma desilusão amorosa, namoro de mais de três anos, que a deixou perturbada, sem juízo como se diz popularmente, vindo a tentar o suicídio, jogando álcool em seu corpo. Como a quantidade era pouca, só deu para molhar os cabelos, escorregar pela cabeça e chegar aos olhos e a boca. Resultado: queimaduras de segundo grau nas partes salpicadas com álcool. Para mitigar sua aparência usava um lenço de cabelo cobrindo-lhe toda a cabeça.
Amargurada passou a se esconder dos citadinos, alojando-se em uma pequena casa quase caindo, em um também pequeno e estreito terreno abandonado de dono desconhecido. Suas saídas só se davam quando precisava pedir alimentos para a sua subsistência. Seu apelo era atendido por algumas almas caridosas, bastava aproximar-se da porta dessas pessoas que, quase sempre, recebia um pouco de arroz, feijão, sal, farinha, pão, açúcar, café e óleo comestível. Mantimentos não perecíveis permitiam que ela mesma fizesse sua alimentação. Não podia trabalhar em casa de ninguém, suas mãos, quase entrevadas, a impediam de lavar roupa ou fazer faxina. Suas roupas sujas eram colocadas em um balde com água e sabão e ali deixadas por um dia e depois levadas ao sol para secar. Algumas vezes mulheres caridosas presenteavam-na com roupas usadas, mas em bom estado.
Ao passar próximo a crianças sua figura causava temor, sobre alguns adultos, repulsão. Quando andava pelas ruas era perturbada pelos moleques que a chamavam de quatro-olhos, ou fonfom pela quase inaudível e fanhosa fala. No início se importava muito, corria atrás de quem lhe zombava, atirando o que tivesse nas mãos sobre o chacoteador. Aos poucos, percebendo que havia boas pessoas naquela cidade, foi se acostumando. Só não aceitava o desprezo dos irmãos e de alguns moradores locais.
Um dia um magote de garotos começou a atirar pedras sobre sua casa. Quando saiu à porta quase todos correram, apenas um ficou, caiu, bateu a cabeça em uma grande pedra e desfaleceu, muito sangue escorreu da fronte do garoto. Com dificuldade ela o arrastou até dentro de sua casa e o colocou em sua velha cama que se encontrava impecavelmente limpa. Fez curativo na cabeça do moleque e conseguiu lhe estancar o sangue. Ao acordar o garoto se assustou:
— O que você fez comigo? - perguntou ele.
— Você bateu com a cabeça na pedra e desmaiou.
Compreendendo muito pouco o que ela estava a falar, ele tentou se levantar e novamente sentiu-se tonto. Aquela mão magricela pousou na testa e percebeu que ele estava febril, ela havia sido enfermeira antes da tentativa de suicídio. Alguns garotos voltaram para saber o que tinha acontecido com o amigo e Marieta falou que eles fossem chamar o pai do garoto que era médico bem-sucedido na cidade. Imediatamente mãe e pai chegaram e, já na entrada do terreno, ficaram sabendo do acontecido e da molecagem dos garotos, denunciados por eles mesmos.
Ao ver o filho, perceberam que ele fora devidamente atendido por uma profissional competente. Pediram desculpas pelo garoto e perdão por terem, durante muito tempo, desprezado aquela pessoa de olhar asqueroso, mas de bom coração. A notícia se espalhou pela cidade e Marieta nunca mais teve medo de sair de sua casa e passear pelos seus lugares preferidos, ir à igreja e ficar sentada em um banco na praça da matriz, a apreciar o pôr do sol.
A prefeitura doou o terreno, mandando erguer uma casa mais decente e a condecorou como Enfermeira Exemplar do município, outorgando-lhe, por decreto, um salário mensal como ajuda à sua subsistência.