SEXTA FEIRA SANTA.

As águas de março fecharam o verão. Uma brisa fresca deu as boas vindas ao outono e ao mês de abril. A quaresma. A semana santa iniciada pelo domingo de ramos. A chegada da páscoa, principal festa cristã. A ressurreição de Jesus Cristo. No século IX, o papa Nicolau I impôs a abstinência de carne vermelha e frango como respeito ao derramamento de sangue do filho de Deus, o cordeiro imolado na cruz. Na cruz, o maior sacrifício de amor a humanidade. O mundo a espera de uma ajuda divina para o fim da pandemia. Na rua das Tulipas, número 344, a sexta-feira santa era uma data especial. O sol nem tinha nascido e Filomena já trajava o avental rosa. O lenço na cabeça. O rádio sintonizado na Canção Nova. Volume médio para não importunar os vizinhos. Ela conferiu o badejo e a corvina na marinada. O bacalhau dessalgado na travessa. As batatas cortadas. O cheiro verde. Ela tirou os pães assados do forno. -"Vou aproveitar a quentura do forno pra colocar o pudim de leite condensado." Disse a si mesma. O caderno de receitas, que era de sua avó, aberto sobre a mesa. O cheiro de café fresquinho. A rosca doce, no centro da mesa da sala de jantar, ao lado de um bolo de aipim. -"O quindim. Sexta-feira santa tem que ter quindim." Os ovos. O açúcar peneirado. O leite de côco para o peixe. A mandioquinha para o purê. O fogão cheio de panelas. A geladeira sendo aberta a todo momento. Ela conferiu o cardápio da noite. -"Feijão. Tem que ser cozido no dia. O quiabo verdinho, a abóbora japonesa. A lasanha de berinjela com queijo. Nada de carne na sexta-feira santa." Nove horas. O marido Belarmino despertou. A toalha nos ombros. Ela deu um grito. -"Não. Não pode tomar banho na sexta-feira santa, homem de Deus! É pecado!" Ela arrancou a toalha dele. O marido concordou. -"Tá bão, Filó. Vou lavar o rosto apenas e tomar um café preto." Minutos depois, ele abriu a geladeira. -"Eita. Parece a geladeira da Ana Maria Braga, tem pudim de ameixa, pavê e ovo de páscoa de bandeja." A mulher bronqueou. -"Não mexe em nada. É tudo pra ceia da meia noite. Estamos em jejum, esqueceu?" O estômago dele roncou alto. -"Meu estômago acabou de me lembrar disso. Estou morrendo de fome, Filó." O jejum do casal começou na quinta feira santa ao meio dia e acabaria após a meia noite da sexta feira. Era a tradição na família da moça. -" Chupa uma bala pra enganar a barriga, Belarmino. O Quinzinho tem dez anos e não precisa fazer jejum. Daqui a pouco ele acorda! Vamos a celebração da santa cruz, logo mais. Vamos participar de dentro dos carros, no estacionamento da paróquia." O homem ergueu a tampa de uma panela com pamonhas. -"Que banquete! Você convidou o rei Salomão, pelo ZAP, pra comer aqui em casa?? Tem tanta comida! Tanto bacalhau! Aliás o preço do bacalhau tá um absurdo. Tudo está caro." Belarmino salivou ao ver a rosca doce. Quinzinho veio até a cozinha. -"Bom dia, mamãe. Puxa, que cheiro bom! Estou faminto. Vou até tomar um banho rapidinho!" Filomena o abraçou. -"Sem banho hoje. Sexta-feira santa a gente não toma banho, não varre a casa, não lava a louça, não lava roupa, não corta unhas, não fala palavrão, não penteia os cabelos, não faz festa. Não faz nada. Tudo porquê Jesus, o filho de Deus morreu. Está morto por amor a nós todos. É assim que fui criada, respeitando o dia santo." O garoto sentou. Filomena foi a cozinha e ferveu o leite para o filho. Belarmino foi atrás dela. -" Não pode fazer nada. Aquilo também não pode?" Filomena o beliscou. Belarmino sorriu e foi colocar o lixo pra fora. Quinzinho deu um grito. -"Vou querer tapioca com côco e mussarela, mãe." Belarmino voltou e folheava o jornal. -"Não vai querer ovos mexidos, filhão? A mamãe faz!" Disse Belarmino, provocando. Quinzinho vibrou. -'Boa idéia, velho. Por favor, mamãe. Sem bacon pois é sexta-feira santa!" Filomena sorriu. -"Vou fazer com carinho." Belarmino fechou o jornal. -"A senhora diz que na sexta-feira santa a gente não faz nada mas acorda as quatro da matina pra fazer um mundaréu de delícias?! É pra acabar com o pequi de Goiás!" A mulher não deu ouvidos. Belarmino ligou a tevê. Os filmes da paixão de Cristo. Quinzinho foi o único que almoçou. Comeu pastel de queijo com suco de laranja. A família foi a igreja do bairro. Todos de máscara e respeitando o distanciamento social. Filomena, ao chegar em casa, continuou com os afazeres culinários. Belarmino e o filho jogavam dominó no quarto do garoto. -"Duas da tarde. Vai começar o filme na Globo, O quarto rei mago." Anunciou a mulher. Belarmino e Quinzinho vieram até o sofá. O filme mal começou e o garoto quis pipoca. Filomena saiu várias vezes para ver o peixe no forno. Saiu outras vezes para conferir as pamonhas e montar a lasanha. -"Será que ele vai conseguir dar a jóia pra Jesus?" O garoto estava entusiasmado com o filme. Quinzinho quis um pedaço de bolo de aipim. Belarmino se levantou. -"Não dá mais, Filó. Vou tomar café da tarde com o Quinzinho. Jesus não vai ligar se eu quebrar o jejum. Trabalhei a noite e tô varado de fome." Filomena fez o sinal da cruz. -"Acho que você é molengão, Belarmino. Não consegue esperar até a meia noite. Pecado quebrar jejum!" Belarmino tirou uma bela fatia de bolo. -"Olha, Filó. Você lembra das palavras do padre Fernando? Deus vê o coração. Mais vale uma casa pobre e com harmonia do que uma mansão com fartura e desavenças. Tanta comida só pra nós três enquanto tem tanta gente morrendo de fome! Não vamos comer tudo, vai estragar. Tem peixe pra alimentar um batalhão. A gente nem sabe se vai estar vivo a meia noite! Amanhã não sabemos! Além disso, jantar a meia noite é indigesto, a gente vai dormir mal, de barriga cheia! A gente fica sem comer, jejuando mas depois se empanturra de comida. Não sei!" Filomena limpou as lágrimas com o avental. -"Também já pensei nisso. Tô cansada de fazer tanta comida. A pia tá lotada de louça suja. Além do mais, essa rosca doce tá igualzinha a da minha vó Jurema. Tô me segurando pra não comer um pedaço." Quinzinho ergueu o dedo, pedindo a palavra. -"A gente pode doar aos pobres, a um asilo talvez! Assim a comida não estraga e fazemos o bem." Tempo depois, a família saía de carro. Filomena e Quinzinho seguravam com cuidado as bandejas de alumínio. -"A diretora do asilo ficou feliz ao receber tanta comida. Vai até servir o bacalhau no jantar dos velhinhos." Disse Belarmino, já em casa. -" Eu adorei o nosso gesto, papai. Quero visitar os velhinhos, após a pandemia passar." Exclamou Quinzinho. -"Vamos jantar no horário normal. Alguma coisa básica e rápida. Um arroz com salada. Pastel de queijo vai bem. Eu faço o jantar, querida." Disse Belarmino, gentilmente. -"Acho que Jesus aprovou nosso gesto de amor. Foi uma sexta-feira santa diferente! Estou me sentindo bem." Disse Filomena. -" Jesus gostou, certamente. Filó, aqueles idosos do asilo vão provar o melhor bacalhau do mundo pois foi temperado com amor. Fim

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 02/04/2021
Reeditado em 02/04/2021
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