Camelo

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Caminhávamos, eu e minha esposa, pela praia em nosso trajeto frequente. Íamos até o fim dela, local em que havia um resort famoso e uma pedra - a nossa pedra. Subíamos e nela ficávamos contemplando o mar. O dia estava limpo, azulíssimo o céu e o mar espelhado em anil. Dia especial!

Quase chegando ao hotel, (a praia ainda não estava lotada, era a semana anterior ao Natal) vem em nossa direção um rapaz com o uniforme do hotel, sorridente, prancheta e folhetos nas mãos. Vai querer nos vender alguma coisa!- pensei.

-Bom dia, tudo bem? Querem ter um dia especial hoje? - nos aborda.

Olho de soslaio para a minha mulher, que sorri faceira e interessada, como que dizendo: vamos ver o que é esse dia especial?

-Bom dia - cumprimento o rapaz e remendo: - O que é esse dia especial?

-Vão passar o dia no hotel para conhecer sua estrutura de laser, com a lanchonete aberta e almoço grátis - é sensacional nosso bufe de comida açoriana, o que acham?

-Ah... sei, sei, mas como um amigo meu diz: não tem almoço de graça! - respondo ao rapaz, simpático e paciente. Sorri largo e emenda:

-Tem sim! Esse almoço vocês não pagam nada não, eu garanto! Por isso que é um dia especial.

-Bem, já que diz que é assim, que assim seja! Vamos pagar pra ver né querida. Ou melhor, ver para crer!

Começa ele a preencher a ficha: nome, sobrenome, identidade, idade, endereço, e blá, blá.... que vamos respondendo. Então, nos diz:

-Ah, também vamos ter uma apresentação do "Vacation Program" de compartilhamento de semanas de férias no mundo todo. Essa é a condição. Vocês não podem deixar de comparecer, pois se não forem, serão cobrados de todos os grátis no check-out/saída! Mas é interessante a apresentação e não são obrigados a comprar nada.

Sabia que tinha alguma coisa a mais nesse presentão de Natal! Iriamos participar de imersão para venda de cotas de "time sharing" do hotel. Olhei para a esposa, que ainda sorridente e faceira, aceitando esse "vacation day" oferecido pelo garoto.

-Que horário posso agendar a apresentação, tenho às 14, 16, 17 horas?

-Às 16 horas está bom, não querida?

-Sim, ótimo! - responde animadíssima.

-Certo, então podem já ir para a recepção e fazer o "check in" e aproveitarem esse dia especial.

-Vamos voltar pra casa e iremos daqui a pouco para lá. - respondo.

-Certo, pode ser que os encontre na recepção do hotel. Até lá.

Voltamos pela praia, caminhando, ela diz sorridente:

-Viu como dou sorte!

-Pois é, mas quem deu foi o seu biquíni novo, isso sim. Não queria pôr ele, tá lembrada, porque seria só para ocasiões especiais e te disse que todos os dias eram especiais, por estar comigo não é? - rimos alegres e felizes, mas ansiosos e curiosos com o nosso dia especial pela frente.

Pegamos a moto e fomos para o hotel. Ao chegarmos à entrada da recepção, lá estava o "Renato" - havia me dito o seu nome durante a entrevista - com seu sorriso largo, nos recebendo e encaminhando para o atendimento e liberação da entrada.

Fizemos o processo, recebemos os cartões de identificação, (os que sempre víamos nos hóspedes, balançando em seus pescoços ao caminharem pela praia) entramos em uma Van com outros premiados e descemos para a área das piscinas.

O dia estava lindo, ensolarado, com uma leve brisa refrescante, que o deixava menos quente do que os anteriores.

Fomos pegar as toalhas e guardar os capacetes. O guarda volumes era na área internacional, do "spa", local das celebridades, segundo nos informaram. Pegamos as toalhas, guardei os capacetes, escolhemos um guarda sol de sapé sombreado ao seu redor, encostado na mureta divisória do hotel, com vista deslumbrante do horizonte, e da praia em toda a sua extensão. Estávamos no lugar dos hóspedes, que sempre víamos refestelados quando íamos à nossa pedra especial, fora do resort. Agora, seria a nossa vez!

Era, também, onde há mais de quarenta anos eu acampara. Bem ali em uma depressão a minha frente. Uma odisseia juvenil dos anos setenta: a viagem fora de "fusca", de SP a Florianópolis, em quatro pessoas, estrada de pista única, chamada na época de a "estrada da morte", pela frequência dos acidentes fatais que protagonizava, principalmente pelos caminhões. Chegávamos por um caminho de areia batida, sem casa e sem viva alma, até uma porteira. Era uma fazenda, e para entrar, pagávamos em torno de cinquenta reais para um senhor que cuidava das vacas e fazia um dinheirinho "por fora". Cruzávamos um riacho - existente ainda - e subíamos o "morrete" até aquele local, onde agora, olhando-o, relembrava essa época especial. O dia já estava sendo bem especial mesmo.

Fomos "sapear" a lanchonete ao lado das piscinas, pegamos frutas e suco de laranja, nada excessivo porque aguardávamos o alardeado almoço. Dei uma caída na piscina. Fiquei um tempo entre o quiosque e a piscina, mas não vi nenhuma "celebridade". Minha esposa voltou dizendo que o restaurante da área internacional era mais exclusivo , e que, momento bom seria ir antes das treze horas, depois encheria. Eram já doze e quarenta. Iríamos às treze horas, então.

Entramos no restaurante e namoramos o "Buffet" - ela é louca por peixe e frutos do mar. Tinham os dois: uma panelada de mariscos, lulas, camarões e outro, de postas de peixe ao molho, fora os demais pratos. Renato tinha nos falado do suco de melancia, maravilhoso. Nosso "menu" estava completo. Sentamos, veio o garçom e lhe pedi o apregoado suco. Ela, já se servia dos mariscos, lulas, peixes...

Foi um lauto comer. Experimentei de tudo, mas um pouco decepcionado: os pratos, por ficarem muito tempo sob o fogo dos "réchaud", perdiam a sua consistência, e os frutos do mar, amolecidos demais. Mas, uma sobremesa surpreendeu maravilhosa e inesperadamente: um pavê de cupuaçu - foi o ganhador de "o melhor prato". Deliciosa!

Fizemos um pouco de hora para irmos à apresentação às dezesseis horas. Caminhamos pelas ruelas cheias do local, ou melhor, abarrotadas de crianças, pais, mães e idosos. Havia poucos jovens, a maioria eram famílias inteiras, de avó a neto, talvez bisnetos, que por nós passavam a todo instante. Uma multidão!

Havia locais com grandes sofás em que algumas pessoas tiravam uma "sonequinha" de depois do almoço. Arrumamos um local próximo de onde seria a apresentação para nós fazermos também a nossa soneca pós-almoço.

Chega o horário, entramos no local e um rapaz nos faz entrevista completa a frente de todos ali: nome , idade, endereço, etc.. Depois, pede para aguardar uma pessoa vir nos atender.

Junto conosco, há outros casais aguardando a sua vez - parece sala de espera de consultório médico.

Vem uma moça e chama pelo nome o casal ao nosso lado. Pergunta se eles conhecem o resort, se gostariam de visitar as instalações, etc. e tal. O casal sai para o exterior naquele calor tórrido e abafado. - Querida, não vamos caminhar nesse solão não, já conheço o hotel, você sabe né? - ela concorda.

Chega nosso apresentador - rapaz altíssimo, magricela, sorrisão na boca e conversa de vendedor de "enciclopédia", cheio de trejeitos, caretas, mas simpático e alegre. Vai começar a sessão do "veja bem", pensei!

Entramos no salão cheio de mesas, com vários outros casais sendo atendidos. Sentamos e começa a apresentação, toda ela programada com roteiro e falas. Ele, todo sorrisos.

-Quer tomar alguma coisa, um café, suco?

-Não obrigado, acabamos de almoçar!

Segue em sua enquete, perguntado quantas viagens fazíamos por ano, para onde, etc. preenchendo seu formulário. Seguíamos seu raciocínio, respondíamos. Mas o valor exigido pelos pontos nos desestimulou e lhe dissemos isso após a sua apresentação. Não se abateu! O rapaz era obstinado, paciente e simpático. Reduziu o valor e retirou taxa de inscrição. Nada. O dia já não era tão especial assim para ele, deduzi.

-Você sabe como os árabes negociam? - lhe pergunto.

-Não. Como é?

-O árabe negocia em cima do seu camelo, e só quando vai fechar o negócio é que desce para apertar a mão!

-E como você está no camelo agora? - pergunta.

-To com ele quase virando para ir embora! - rimos os três.

Então, vem a condição de troca de pontos com os hotéis associados ao redor do mundo - a sua última esperança para que nos associássemos!

Levou-nos para uma sala com tela de TV, passou um vídeo da empresa responsável pelas trocas, maravilhosa, a maior do mundo, faria tudo para nós. E sua cantilena seguia.

Escutamos, tomamos, ou melhor, eu tomei vários cafés, comi castanhas de caju e biscoitos de chocolate. Seguiu esse evento por quase 2 horas!

-Vai descer do camelo?

-Continuo sentado nele e ele quase todo virado para ir embora!

Vendo que não nos venderia nada, chama a sua gerente. Ela senta e rapidamente lê nosso relatório. Ele fala da história do camelo, que a faz dar uma risada. Apresenta-nos novo valor, com redução de pontos, isenção de anuidade, e mais alguns benefícios - não topamos. Reduz mais uma vez. Seguimos irredutíveis - digo que o camelo está indo pra casa, e assim foi chegando a uma condição que até poderíamos assumir, mas não era a nossa prioridade.

-Infelizmente, estou voltando com o camelo pra casa!

-Camelo teimoso esse seu, heim! - diz o rapaz de bom humor.

Perguntei sobre o brinde que ganharíamos independente do resultado, como Renato nos dissera.

-Sim, claro, trago o seu brinde, mesmo que não tenha descido do seu camelo. - diz a gerente sorrindo e nós também.

Recebemos nosso brinde: um novo passe para passar o dia no hotel com almoço incluso, mas sem apresentações!

Foi um dia especial para nós e para o camelo!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 31/03/2021
Código do texto: T7220375
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