O eu entre atos e cenas

Diante de mim mesmo eu não sou nada. - Sabe como são as coisas, elas nunca têm a mesma forma e sentido e no fundo, não me agrada, mas sei que é assim que funciona. Da mesma forma, nós estamos em cima dessa Terra para viver da forma mais intensa e com momentos memoráveis, para quando envelhecermos, termos muito o que contar para os nossos netos, da forma que nunca contaram para nós. Quem diria que o tempo era como um livro para um leitor cheio de expectativas que engole as palavras e vira uma página, depois outra, depois outra, depois outra, espera um final bombástico, mas fica pensativo quando chega ao último parágrafo. - É só isso?

Até o mais célebre apreciador de uma obra de arte, sabe que seus sentidos e significados nem são tão espetaculares, se por trás dela não houvesse uma alma que se traduz em formas. Com seus atos e cenas contagiando a todos, o show da criatividade. - Eu gostaria tanto de escrever um livro! Tenho ótimas ideias e uma cabeça que não para nunca, ouvi dizer que esses são os pré-requisitos básicos. Ah e um coração cheio de emoções das mais variadas possíveis, uma planície imensa de tinta de caneta. É como um ator, com uma capacidade de ser vários personagens diferentes, como se isso fosse inato. Ele só preicsa de um palco.

Nosso erro mais fatal está na hora de escolher um palco e de sermos reféns da plateia. Foi quando eu me debrucei por um chão de madeira frio com todas as minhas flores jogadas. O último livro que tentei escrever estava todo rasgado, com várias páginas queimadas. Meus olhos ardiam e meu corpo estava todo dolorido. - Parece que levei um porre. E fora de mim tentei me levantar.

Apenas recolhi minhas flores e me ergui.

- Eu sei que você está triste. - eu disse com um sorriso amigável no rosto. Nesse exato momento, vi um vendedor humilde com algumas rosas. Fui até ele. - Quanto custa essas rosas?

- Uma é cinco. - estendi a nota. - Quer escolher?

Peguei pelo caule e a estendi com a outra mão para Léo.

Ele me olhou com estranheza, com algo muito incômodo. Estávamos em plena Avenida Paulista, movimentada e um horário que as pessoas andavam de um lado para o outro sentido ao trabalho. Uma moça que passou diante de nós cochichou "Que fofo!" e isso o constrangeu ainda mais.

- Já parou para pensar: o que me deixou triste?

- Vem comigo, eu te levo para onde quiser.

- Para onde eu quero ir ou para onde você quer que eu vá?

- Desculpa se eu expresso demais tudo o que sinto.

- Acontece que você não sente dessa forma. - Ele disse enquanto fechava uma revista no sofá da sala. Largou ela de lado e foi à cozinha. Voltou com uma xícara de café nas mãos.

Olhei ao redor dele e todas as ruínas que estavam diante de nós. Tudo tão destruído. Tudo quebrado. Um pequeno trinco no vidro da janela de frente para a rua. Um telefone empoeirado do lado. Paredes bege escura. À tarde, um tom acinzentado tomava conta daquela sala. E era uma tarde que ameaçava chover e isso nos prenderia naquela sala por um bom tempo. - Nós vemos tudo da forma que nos vemos por dentro.

- Eu tenho medo de ficar sozinho.

- E eu significo o que para você? - Ele disse em um tom furioso.

Lembrei-me de quando estávamos, certa vez, em uma exposição de arte. Era um ambiente enorme e silencioso com algumas fotografias de época em quadros que eu particularmente estava com a cabeça tão cheia que não conseguiria prestar atenção em nada. - Mas ele estava fascinado por aquilo. Aquelas coisas impressionavam-o tanto que era como se eu não existisse ali, naquele momento. Traziam temas como criminalidade na década de 60 e 70.

Ele andava sempre com sua máquina fotográfica pendurada no pescoço buscando linhas e simetrias. Parei ao seu lado enquanto fazia algumas fotos. - Eu estava um pouco entediado, na verdade, muito entediado. Sinceramente, preferia andar por algum lugar, comer um pastel e falar sobre coisas do dia-a-dia. Alguns problemas cotidianos, como trabalho, família e amigos. - Apesar de nunca conseguir encaixar aqueles assuntos nos nossos papos.

Depois descemos algumas escadas e paramos diante de uma sala repleta de prateleiras com grandes livros de fotografia. Sabia que ele pararia ali para apreciar por longos minutos cada um deles. - Eram gigantes. - Meu rosto corou. Se tornou outro. Minha expressão facial, sem que eu pudesse controlar era de um tédio horripilante capaz de tornar o clima de qualquer um ao meu lado um saco também.

- Você quer ir embora, Kaio? - ele disse.

- Não vou mentir, queria sim.

- Consegue esperar mais uns minutos?

- Claro... - na verdade, não.

Engraçado como eu nunca fui de apreciar as imagens, os longos textos, as coisas mais abstratas. No começo do namoro achava tudo isso um saco. Aos poucos sua companhia começou a me cativar. Depois de um tempo percebi que era tão lindo a forma que ele admirava tudo aquilo; por muitos anos tentei me atrair também. Comecei a relacionar a arte com a espiritualidade. Lancei meu primeiro livro e depois não parei mais.

- Acho que gosto de escrever. - disse certa vez.

- Isso é muito bom.

No mesmo instante fiquei em dúvida se era aquilo mesmo que eu gostava. Mas foi aquilo que me fez ir mais além por muitos anos.

- Me responde, significo algo para você realmente? - voltei para o presente.

Acenei que sim com a cabeça.

Aos poucos percebi que havíamos nos transformado. - Os anos passaram rápido, completamos 8 anos casados inacreditavelmente. Ele nunca mais tinha ido a um museu, ou a uma exposição de arte. Sua câmera estava guardada no fundo da gaveta cheia de pó. Agora sempre andávamos e andávamos e nunca parávamos em lugar nenhum. Quando parávamos era para descontar na comida, tudo que não conseguíamos segurar em relação um ao outro.

- Está feliz comigo? - ele disse.

- Eu não sei e não sei se você está... - fiquei de costas para ele. - você tinha o seu mundo e eu o arranquei aos poucos. Da mesma forma que me perdi também. Eu me vejo preso a um mundo do qual eu nunca pertenci.

- É aí que você se engana. Você sempre sugou as energias de todo mundo porque nada preenche esse espaço que você tem dentro de si.

Quando eu era criança, livre e correndo pelo quintal de casa, avistei algo que eu jamais gostaria de presenciar na minha vida. Era minha mãe com um sorriso incrível no rosto, apesar de uma péssima aparência física. Estava pálida e inchada, mesmo assim sorria. Entrava pelo portão com certa dificuldade, meu pai vinha logo atrás ajudando-a a andar com cuidado e muito prestativo. Nas mãos dela, algo enrolado em uma manta azul bebê. Era um outro.

Eu ficava no chão com meus brinquedos sozinho desde então. Meus pais estavam muito ocupados com o bebê. E tudo o que eu construi com minhas massinhas eram uma porcaria que grudavam no piso e dificultavam limpar - eles já estavam com tanto trabalho e eu ainda fazia aquelas "artes" no chão. Minha mãe estava com a aparência cada vez mais entristecida.

- E você sempre justifica seus problemas assim?

- Essa é minha história.

- Você é só isso?

- Não, agora eu dependo da arte para viver, antes eu a fazia para ter um pouquinho deles.

- Me devolve um pouco de mim... - ficamos em silêncio. Meu peito apertou e eu senti que dessa vez eu teria que deixá-lo viver um pouco. - eu acho que vou embora.

Gabriel entrou correndo pela sala gritando.

- Papai, eu tive um pesadelo. - me abraçou trêmulo. - o que foi, querido?

- Sonhei que o papai Léo tinha ido embora.

Ele ficou assombrado.

- Filho, eu não vou. - ele disse. - Vem com o papai aqui na cozinha, vou fazer um chocolate para você.

Fiquei sozinho naquela sala. Era como se todo o elenco tivesse se retirado, mas plateia fosse incapaz de sair daquele lugar, onde eu as coloquei.

Alberto Novais
Enviado por Alberto Novais em 30/03/2021
Reeditado em 30/03/2021
Código do texto: T7219985
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