O Último Elo

“Respire”

Eu lembro de ter dito isto a ela. Não tínhamos alternativa naquele dia, esgotamos todas as possibilidades incluindo a de nebulizador e outros antibióticos. E respondendo à sua pergunta, sim, estávamos sob observação de uma médica e foi esta mesma quem veio pessoalmente à nossa casa com uma equipe.

“Tente de novo”

Talvez eu tenha repetido isso algumas vezes até ela conseguir se estabilizar em meus braços, pouco antes de ser levada, pouco antes de minha vista dar uma leve entornada para baixo. Eu não seria a primeira pessoa, nem a última a estar encarregada de cuidar de alguém e ao mesmo tempo de ser cuidada por este alguém. Mas desta vez estava longe do controle dela de segurar o segredo de família passado durante os meus trinta e dois anos.

“Isso vai passar”

Ela disse algumas vezes isso, talvez em uma tentativa de me fazer voltar a meditar e insistir nesta atividade. Porém, exclusivamente desta vez ela sussurrou essa frase em meus ouvidos, ao mesmo tempo que ouvíamos passos chegando em nossa casa. Quando eu os ouvi pude perceber que eles eram carregados de pressa, de pressão, de cansaço, de esperança.

“Elo”

Eu me perguntava, mas custava a segurar minha ansiedade. Eu via a chuva tentando invadir nossa casa, um vento que passava em minha pele capaz de gelar meus pés, até que me reconectei com o mundo e corri para fechar a janela da sala. Logo após isso aquela palavra voltou e ficou mais uma vez fixada em minha mente.

“Estamos sozinhos... de novo”

Nossa mente é um labirinto que leva nossos pensamentos em uma busca incessante pela verdade, no fim ela acaba olhando para o abismo que pode ser esta tal verdade e se recusa a encará-la e nos levando aos mesmos questionamentos mais uma vez. Eu parei no meio de casa e olhei para todos os cômodos, olhava e olhava novamente, em uma movimentação fechada por círculos, foi quando fechei meus olhos e respirei.

“Coragem”

As paredes de minha residência gritavam por isso, eu tinha tudo em minhas mãos, todas as peças que foram jogadas em minha cara de uma só vez. Eu caminhava para o nosso quarto a passos lentos, livres, enérgicos, desesperados. Quando finalmente abri o armário e alcancei a tal caixa que ela falou. A luz do dia teimava em atravessar as nuvens fechadas, ao contrário da chuva que saia delas facilmente e perturbava os meus ouvidos.

“Adoção”

Estava sempre fora do meu controle. Acho que contei quatro ou cinco papéis, mas uma contagem matemática a esta altura estava longe de ser importante. As palavras de um processo, essas sim me interessavam, elas eram misturadas com termos do século passado, mas que sufocavam meus pulmões em apertos desesperadores. Já meu corpo ansiava por aquilo cada vez mais tentando injetar o máximo de oxigênio possível para eu não me sufocar.

“Família”

A esta altura eu já estava tonto o suficiente para precisar deitar na cama e fechar os olhos. As memórias vinham em minha mente, atraídas por imagens fotográficas gravadas nas lembranças. Eu tentava mais uma vez deglutir aquela situação com gosto amargo para a língua, que afundava meu corpo e deixava-me agarrado àquela colcha produzida por ela mesma. Deitamos por tantos anos juntos nela, contudo pareciam segundos perdidos em uma mentira.

“Controle-se”

Era uma das poucas palavras que percorriam o labirinto de meus neurônios. Eu não posso fazer nada desta vez, tudo escorreu como quando eu tentava pegar a espuma que estava no mar. Lembrei de que alguns meses atrás estávamos os dois na praia, vendo aquela água cor de mel, bronzeando-nos ao sol escaldante. Quando eu parei para almoçar os caranguejos ela me falou essa mesma palavra, afinal eu estava os comendo como se fosse a última vez.

“Último”

Sim, realmente parecia o nosso último dia lá fora. Agora o frio estava tomando todas as promessas que fizemos juntos, em um mundo com muitos anos pela frente, exceto que não contávamos com a surpresa do tempo. Naquele dia de sol precisamos voltar para casa pela linha Atalaia – Centro correndo bastante, porque de repente o sol foi embora e não tínhamos mais o que fazer. Agora que consegui abrir os olhos posso ver a chuva molhando mais uma vez a janela, assim como aquela que molhava os arcos azuis da praia.

“Dias”

Tivemos mais de sessenta deles dentro de casa, ficávamos em casa revezando-nos na cozinha, ouvindo canções e tentando nos manter de pé. Passamos pela fase da meditação, da culinária diversificada, dos estudos, dos filmes, das séries, dos vários nadas... até a fase da respiração ofegante, da ardência do corpo, dos espirros descontrolados, do medo em nossos olhares cruzados.

“Quebrados”

As vezes ela gritava comigo pela minha irresponsabilidade de sair naquela noite de reencontro dos amigos. Pouco a pouco fomos despedaçados pelo nosso próprio mundo, traídos por aquele único passeio, o qual me fez agora cair e perguntar-me se aquela seria a última vez que nos encontraríamos.

“Medo”

Sentimento nato, por vezes acompanhado de uma culpa (para aqueles que creem nela como um castigo). Eu tinha noção de que nossos medos agora eram os mesmos, se ela sobreviveria e o que eu acharia da verdade que estava agarrada pela minha mão esquerda, escrita em pedaços de pergaminhos meio amarelados.

“Tempo perdido”

Você pode estar se perguntando se ele não me passa pela cabeça, mas penso que você mesmo deve se responder, o que este conjunto de palavras te traz à cabeça? É neste momento que preciso gritar contigo, enquanto você vocifera para o mundo a necessidade de recuperá-lo eu tenho que te avisar que pode não ser tão ruim assim para algumas pessoas, afinal nem todo mundo tem amores que neste momento estão passando pela fina linha que liga a vida da morte. Então pense duas vezes antes de dizer que deseja recuperar o tempo perdido, aprenda que este é o momento e fim, você precisa vivê-lo.

“Gritos”

Eu continuava ouvindo eles sendo expressos pelas minhas paredes brancas com marrom, salpicadas por tons amarelos. Desta vez eu preciso te perguntar... já se questionou que a sua insatisfação de não poder sair para ir rebolar pode estar salvando a sua vida? Você não estava lá, você talvez nunca saiba como é ligar a televisão e ver que um ente querido seu virou um número, por sinal espero que você nunca vire um número, seja em um cemitério ou em uma penitenciária.

“Vibração”

Foi exatamente o que eu senti no bolso e quando puxei o celular verifiquei que era o número da nossa médica. Os termos que ela usava me geraram uma dor de cabeça e que voltou a apertar minha respiração. Um momento de pausa, precisei desligar o celular e deixar escorrer uma lágrima pelo travesseiro. Eu virei a cabeça para o lado e lembrei dela toda alegre quando conseguiu um emprego após tantos anos se sentindo presa a trabalhos domésticos.

“Um sorriso de uma borboleta”

Uma vez eu estava desenhando a nós dois, percebendo que éramos as últimas pessoas da geração de nossa família. Eu conseguia captar uma leve expressão facial em seu rosto, todas as vezes que guardávamos segredos e eu disse essa frase para ela, como um elogio, o qual nem sempre nos fazíamos por muitas vezes estarem implícitos.

“Jabuticaba”

Era uma palavra que usávamos quando precisávamos sair de uma festa chata, ou de um evento onde todo mundo acha irritante, mas que não admitem pela formalidade social. Agora eu estava sussurrando, falando, gritando, soluçando esta palavra, essa é a festa a qual eu quero sair correndo... é a festa onde todas as luzes se apagam, onde todo o vazio me consome.

“Verdades de um último ruído”

Quando eu estava balançando-me na cama derrubei a caixa, o barulho que ela fez doeu como um zumbido. Eu precisei me levantar e juntar os papéis que ainda estavam nela, foi quando me deparei com fotografias 10x15 espalhadas pelo chão. Agora era o meu coração que estava me dizendo verdades bem memoráveis e explícitas... fotos as quais segurei em meus dedos, as quais afastei das desgraças programadas pela minha mente.

“Memórias”

Eu repetia isso para mim mesmo, elas estavam em minha frente, iluminadas pelo cinza do céu, incluindo a minha foto quando bebê saindo daquele abrigo que nem me passava pela mente. Incluindo fotografias dos poucos brinquedos doados que tive acesso, também algumas recentes dela ao meu lado. Eu procurava em minha cabeça motivos para revoltas, porém eu me deparava com o amor, este sentimento tão medonho capaz de me fazer ficar abraçado com aquilo.

“Toque”

Eu estava observando a sua pupila, sentindo o cheiro de seu perfume alfazema, ela segurava minha mão. Era assim todo o nosso carinho, carregado de alegrias, discussões, debates, discordâncias, companheirismo. Compartilhamos um ou dois cheiros até eles chegaram em nossa casa para levá-la na ambulância.

“Tudo vai ficar bem”

É o que a gente tanto lê, tanto ouve, mas então eu te pergunto... tudo vai ficar bem para quem? A presença dela indo embora era como se todas as lâmpadas de nossa casa queimassem ao mesmo tempo. O corpo dela estava se despedindo e deixando dúvidas. Eu realmente vivi todo o meu passado, isso ninguém será capaz de tirar de mim e a chave para ficar tudo bem está exatamente no medo que ela tinha, mas eu não precisava nem pestanejar sobre a resposta para este sentimento dela.

“O último elo”

Eu lembro perfeitamente que enxuguei uma lágrima dela, dei um beijo em sua testa, a abracei fortemente... segurei aquele instante como se fosse último, até senti seus dedos afastando-se dos meus, até sentir aquele sorriso borboleta invadir a minha mente. Pela fresta da porta eu vi um fio de cabelo dela caindo da maca, eu deveria ter o procurado, afinal o meu último elo foi levado em um adeus implícito.

Matheus Andrade de Moraes
Enviado por Matheus Andrade de Moraes em 28/03/2021
Código do texto: T7218330
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