Rasto do Passado

Elmano acabara de chegar em São José dos Campos. Há anos guardava no coração o desejo de tão breve pousar no bendito território Joseense e colocar em prática o que foi arrancado de si: o desejo de nunca ter se separado da inesquecível e dócil Emha.

A vida o forçou a deixar a única filha do primeiro casamento de lado. Sem refúgio teve que retornar para a cidade de Três Corações/MG. Cidade da qual o casou pela segunda vez e o tornou pai de dois meninos.

Agora, casado há quase duas décadas com a segunda esposa, ainda na flor dos quarenta e dois anos, criou coragem e saiu em busca da inesquecível primogênita. Sabia pouco sobre ela, mas o que sabia era que as tias maternas moravam no bairro do Jardim Colonial, zona Sul de São José dos Campos/SP.

O bendito dia que há anos prometeu na despedida da filha de um dia a revê-la, chegou, e precisou colocar em prática.

Durante aos longos anos ausente da filha, nunca a esqueceu. Jurou de alma que o desejo da filha haveria de se cumprir. Afinal, era o desejo dele também, não só de realizar o último desejo dela ainda quando criança, mas como também mostrar aos irmãos: a irmã mais velha, a sempre falada pelo pai.

Elmano fazia questão de todos os dias lembrar da saudosa filha.

Só não fazia ideia de como ela estaria...

Desceu no terminal rodoviário de São José dos Campos e procurou do pouco que conhecia, sair em busca do antigo endereço em que tudo aconteceu.

Pegou um táxi e o intimou a levar ao determinado endereço. Tinha convicção que aquele endereço ainda existia e haveria de alguém estar ali.

Chegou, desceu e bateu palma.

Quem o atendeu, foi uma adolescente na casa dos quinze ou pouco mais.

Ao vê-la, o desejo foi logo perguntá-la pelo nome. Teve receio. Vai que espantasse a moça ou colocasse o plano por água abaixo...

— Boa-tarde! É aqui que mora Dona Alzira?

— Boa-tarde! Dona Alzira? Se for a quem estou pensando, morreu há dez anos.

A garota demonstrou ser muito gentil. O atendeu na maior educação. A um certo tempo de conversa, a mesma lhe pediu licença, alegando ter que dar remédio à acamada mãe, mas que voltaria em segundos para o atender.

O compromisso foi levado a sério. Ela voltou e para sua surpresa, com o convite de entrar e conversar com uma pessoa que haveria de saber quem era ele.

Elmano entrou e o encontro aconteceu. Era Moabe, a ex-mulher, mãe da inesquecível filha, arrancada impiedosamente dele.

— Eu esperava e muito por este momento. – tossiu Moabe. — Vivi pedindo perdão a Deus e O implorando para que não descesse à sepultura enquanto eu não corrigisse o grande erro da minha vida. – tossiu novamente. — Desculpe! Fui a culpada de tudo, me perdoe!

Moabe pausou, enquanto silenciosamente lágrimas escorreram do seu pálido e frágil rosto.

Elmano tentou ser gentil, demonstrando a todo momento jamais guardar ódio:

— Não chore, mulher. O mais importante é a tua saúde agora.

— Ah, minha saúde... já nem sei mais o que é isso, desde o dia que eu descobri ser a culpada pela vida da nossa amada Emha. É vinte quatro horas na minha cabeça a cobrança do possível conserto que hei de fazer. Não quero descer a sepultura sem corrigir alguma coisa do meu passado. Me perdoe!

— Não estou aqui para te condenar. Só quero ver a nossa filha.

— Terá que ser muito forte. – acanhou Moabe. — A envenenei de uma forma de que nem eu mesma consigo ter uma conversa de mãe para filha com ela.

— Mas aonde ela está?

— Divina há de saber. Pergunte por Divina. – pausou, logo aos berros chamando pela a outra filha. — Divinaaaa!

A tal apareceu, já demonstrando ciente do caso:

— É uma casa bem falada do Vila Industrial. O senhor conhece o Vila Industrial?

— Bem pouco, mas me lembro de onde fica. É o bairro do Pronto Socorro Municipal, não é?

— Sim, mas é o Pronto Socorro da Vila Industrial. Se sair por aí perguntando por Pronto Socorro ficará perdido. São José dos Campos cresceu e muito, há muitos Pronto Socorros espalhados pela cidade. Só aqui mesmo pertinho, temos: do Parque Industrial e Campo dos Alemães.

— Ah, ela trabalha na área da saúde?

— Não, senhor! – acanhou Divina, interrompida pela mãe.

— Ah, se fosse. Se fosse, não estaria nesse sofrimento. É uma casa de prostituição.

— Nossa filha é uma....

— Garota de programa!

— Como o mundo dá voltas. Jamais imaginaria uma coisa dessa com a minha inesquecível e dócil Emha.

— Emha mudou e muito. Enquanto tinha seus dezesseis anos, me ajudava e muito dentro de casa. Mas devido ao tipo de amizade que teve, nem parece a mesma. Tem vezes que tenho saudade da minha filha.

— Mas o que a fez mudar radicalmente?

— Amigos. Benditos amigos.

O clima aparentou perder força. Elmano necessitou ser ágil e contornar o tempo.

— Como faço para encontrá-la?

— Fácil, Divina há de passar o contato. Ligue-a, mas não diga que você é o pai. Como disse, eu errei. Criei uma imagem muito ruim de você.

— Se permitisse interromper suas conversas... procure-a como um cliente, pois do jeito que conheço minha irmã, se de cara dizer que é o pai, vai azedar o encontro.

Na presença de Moabe e Divina, Elmano acatou a sugestão, mas já a só; só Deus saberia dizer o que passaria por sua mente.

Saiu dali no pensamento mais tenso de toda vida.

— Uma filha prostituta! Com que cara hei de chegar nela? – embatucou Elmano já dentro do táxi com o destino próximo de onde haveria possibilidade de ela estar.

Ao chegar próximo, como a pousada onde haveria de ficar alguns dias até ter o contato com filha, logo resolveu de colocar o plano em dia. Ligou e se passou por um cliente. O encontre aconteceu, entre duas horas, após a conversa:

— O senhor é novo por aqui? – interrogou Emha, já a sós, num local onde acostumara atender os clientes.

— Sou de Três Corações!

— Três Corações? – espantou Emha, esbugalhando os olhos na direção dele.

— Conhece?

— Conhecer, conhecer não, mas sempre ouvi falar que é a terra natal do meu pai.

— Nossa, vi o quanto mexeu contigo ao falar de teu pai. Ele é falecido?

— Acredito que não. Mas é que ele sempre foi uma pessoa marcante na minha vida.

— O que ele te fez para ter este sentimento?

— Melhor nem entrarmos no assunto. Tomaria o nosso tempo. É uma longa história. E outra, o senhor não há de querer me pagar por isso. Vamos ao que te interessa..

— Relaxa! Teremos outros dias para fazermos o que imagina. Me fale um pouco sobre seu pai.

Emha sorriu:

— Tem certeza de que vai me pagar para isso? Não posso deixar de ganhar dinheiro, prefiro ir ao que interessa.

— Não se incomode. Faço questão de o nosso primeiro encontro ser assim.

— Estranho! Nunca imaginei ter esse momento. Nem minha mãe que deveria ser a pessoa certa a me ouvir, quis me ouvir. Talvez faltasse isso na minha vida. Meu pai sempre foi tudo para mim. Lembro das falas da minha avó, era muito apegada a ele. Juro para o senhor, pela a vida que tive longe dele, se eu pudesse escolher, na separação deles, eu teria ficado com ele. Pra dizer a verdade, conversando com o senhor, me deu até uma vontade de ir para Três Corações.

— Jura!

— Com certeza!

— Parece o amar e muito.

— Até os meus dezesseis anos sempre o amei, mas depois de uma conversa que tive com minha mãe, passei odiá-lo. Engraçado que hoje, aos meus dezoito anos, fico conturbada se o odeio ou o amo. Acredito que com ele, minha vida seria diferente. Poderia não ser da melhor, mas do amor que sempre ouvi dele por mim... muitas coisas me defenderia.

— E que informação você tem do seu pai?

— Que o nome dele é Elmano. Hoje deve estar casado e devo ter outros irmãos. E o mais doido é ver os meus possíveis irmãos terem um amor que eu não tive.

— Mas você teve família. – emocionou ele, algo que a espantou.

— Tive, mas não era a mesma coisa. Minha mãe por largar de meu pai, teve que trabalhar e cuidar da casa ao mesmo tempo. Algo que me obrigou a cuidar dos meus irmãos. Deixava de brincar, até mesmo de estudar e fazer por minha família, coisas que era para minha mãe fazer, se o meu pai estivesse junto dela.

— E por que eles se separaram?

— Minha mãe dizia que era por ele ter arrumado outra. Mas hoje, com a idade que tenho, percebo que era ela que o trocou. Já se foi para os meus vintes anos e minha mãe teve oito esposos.

— Oito?

— Isso mesmo. Oito. Só não teve mais, pois teve derrame. Caiu de cama e o último, a trocou por outra. Minha mãe nunca teve juízo. Nunca se preocupou com o dia de amanhã. Vim parar aqui por necessidade de ajudar em casa. Nunca tive experiência de nada. Corri atrás de outras oportunidades, mas o que encontrei foi aqui. Não vou mentir, tem mês que até dá para o gasto, o chato é alguns malas que encontro no meio do caminho.

— Há quanto tempo está nesta vida?

— Dois anos.

— Dois anos! – espantou Elmano logo soltando um assobio bem surpreendido a um cuidado o parando vagarosamente e bem diminuído o som ao se encerrar. Um assobio na leitura de “fiiiiiiiuuuuu” — Desculpa! Acho que essa conversa não esta nos fazendo bem...

— Conversa nem dando, mas a bendita virada que a vida me deu. Não queria estar aqui. Queria um emprego digno ou até quem sabe uma lar digno.

— Você é nova; muitas coisas pode te surpreender ainda. Só precisa ter foco.

— Com a vida que levo? Não tenho muita esperança. Daqui é mais fácil sair uma nova gravidez. – concluiu Emha, enquanto Elmano a encarava espantosamente. —Encontro todos os dias com caras violentos ou coisas piores.

— Você disse grávida?

— Sim, é isso mesmo. Fui mãe. Meu filho está no orfanato aqui da cidade. Morro de medo de ele ser adotado. Por enquanto, a diretora de lá, que é minha amiga, tem segurado e muito a onda para ele não ser adotado, mas sabe lá até quando.

— Sua vida é tensa, hein!

— Sim, e muito!

— E por isso que sinto a falta do meu pai. Tem algo dentro de mim que me fala, se ele estivesse aqui, muitas coisas não teria acontecido.

— Também acredito.

— A conversa está boa. Tem outro cliente me ligando.

— Recusa-o! Eu te pago as horas de hoje.

— Tem certeza?

— Me passa o valor, te pago agora.

— Obrigado! Esse dinheiro será para comprar o remédio da minha mãe. Anda em falta no SUS. Se não fosse isso, eu juro sairia desta vida. Mas e o Senhor? Me fala um pouco sobre o senhor. Por que está aqui se é de Três Corações?

Elmano riu:

— Vim por serviço.

— Éh, mesmo? Trabalha do que, mal te pergunte?

— Construção.

Emha riu:

— O que houve?

— Nada. Rindo de mim, mesma.

— Fiquei curioso.

— Nem precisava te perguntar. Para estar junto de mim, só podia ser peão. Até parece que um homem sucedido estaria aqui, numa espelunca com uma garota de quinta categoria.

— Fiiiiiiuuuuu! – assobiou ele. — Essa doeu até em mim. Pra que se desvalorizar desse jeito?

— Desculpe, mas foi a vida que me fez assim.

— Não precisa se desculpar. Apenas se valorize. Você tem um valor muito especial.

— Acha mesmo? – emocionada caindo na gargalhada.

Elmano se aquietou apenas a encarando:

— Desculpe, mas é tão estranho... Você me paga bem, não sai comigo e me fala uma coisa dessas.

— Vai ver que é pelo pouco que conversamos, e você já ter alegado não gostar da vida que leva. – pausou, acendendo um cigarro. — Resolvi te dar um trégua nesta noite.

— Obrigada! Precisava mesmo. – pausou, se levantando e abrindo a janela de onde estavam.

Elmano se incomodou, insinuando apagar o cigarro:

— Não precisa. Isso não é nada. Tem clientes bem piores.

Elmano parou e a encarou a uma boa hora.

— O que foi?

Elmano continuou quieto.

— Peguei pesado, néh! – concluiu ela, retirando o trocado do bolso e o repassando. — Tome! Não precisa ter piedade de mim. Gostei muito de conversar contigo. Mas é estranho! Continuar assim, acabaremos nos magoando um ao outro. Não quero te magoar. Peguei tão bem contigo. Até parece que temos algum laço de afinidade.

— Pode ser. Quem sabe? – concluiu ele, se levantando e recusando o trocado. — Vamos fazer o seguinte, te dou alguns trocados a mais e vou embora. Algo que você fará o mesmo. Sairá daqui, indo direto para sua casa. Amanhã à tarde nos encontramos e teremos um bate papo mais light. O que acha?

— Acho que não vou recusar. Mas já falo, não se iluda por mim. Não quero te magoar. Sem falar que tem idade para ser meu pai.

Ambos riam.

— Prometo, mas promete que também fará a sua parte!

— Confirmado!

De acordo selados, ambos cumpriam a parte.

Emha cumpriu com a sua parte. Chegou em casa toda empolgada com um riso silencioso, mas bem estampado.

— E aí, não tem nada a me contar? – indagou a irmã, sentada na cama numa postura literalmente devorando os livros aos estudos.

— Pior que tenho. Primeiro, deixe eu tomar um banho e me relaxar.

Pedido atendido. Durou uma hora e meia. O banho longo, acompanhado de um belo banho ao longos cabelos, fora a demorada na escolha às roupas.

— Prometi a mim mesma não se iludir com os caras que me aparecerem. Mas sei lá, hoje apareceu um homem maduro, deveria ter a idade do meu pai. – entristeceu ela.

— Vocês transaram?

— Lógico que não. Nossa, o tempo todo ele teve a cautela de isto não acontecer. Conversou tanto comigo. Cai de tola na sua conversa. Senti o meu pai falando comigo.

— Como assim? Não vai me dizer que se apaixonou...

— Não, claro que não. Mas sei lá, ele me causou uma reação ou sentimento que não consigo explicar. Quem é ele afinal? O que ele quer comigo? Sou uma garota de programa. O que mais posso lhe oferecer fora disso?

— Hei, hei! Você também é gente. Você também merece a oportunidade de ser feliz.

— Acha mesmo? – emocionou Emha, ganhando um colo e um abraço da irmã.

— Lógico, eu tenho certeza.

Emha chorou.

— Chora não.

— Não estou chorando. Só quero uma resposta na perturbação que este homem causou na minha cabeça.

— Precisa ser forte no que vou te falar.

— Eu forte? Depois de tudo que a vida me aprontou, se eu não saber lidar, eu nem sei o que é mais enfrentar a vida.

Divina, respirou fundo e desabafou:

— O homem que te procurou é o seu pai.

Emha entrou em choque. Paralisou por alguns instantes. Logo se pondo a chorar:

— Meu pai? Como assim? Do que é que você está falando?

— Ele esteve aqui a sua procura.

Emha se jogou de costas à cama e desabafou ao choro.

Divina procurou ampará-la mais ainda. Aproximou e a acolheu com carinho:

— Não o culpe por nada. Mas ele é seu pai. Você precisa ver a maneira que ele chegou aqui te procurando. Chorou e muito por saber que estaria por tão breve a te ver.

Frágil aos choros, Emha forçou a indagação:

— Não brinca com isso, meu!

— Não, eu não estou brincando. Só estou sendo leal.

Emha esforçou a se levantar. Divina foi mais forte. Segurou-a pelo braço, interrogando aonde iria. Descobriu que iria até a mãe tirar satisfação:

— Mamãe está frágil demais. Fui testemunha da conversa deles. Foi muito forte ouvir de mamãe que a vinda dele a sua procura era o maior sonho dela. – pausou. — Perdoe-a, por favor! Não brigue com mamãe.

— Ela mentiu para mim. Meu pai sempre esteve vivo.

— Tá, eu sei. Você tem toda razão. Ah, se você ouvisse todos os desabafos dela! Chorou de alma. Desabafou de alma, o maior erro da vida dela. Todas as suas dores de infância e adolescência sobre a ausência do seu pai, parecia que mamãe carregava junto de ti no coração dela. O sofrimento não foi só teu. O teu sofrimento foi o purgatório dela!

Por esse instante, Divina perdeu a voz, cabisbaixou e pegou a chorar, a uma fragilidade forçando a enfraquecida voz sobre gaguices e soluços, da qual era para a irmã perdoar a pobre mãe. Divina tinha razão, quem presenciasse Dona Moabe na cama, se vegetando e definhando, haveria de perceber – os seus dias estariam contados.

As palavras, os sentimentos, os soluços, o choro e a peça pregada pela irmã aparentou ter dominado o coração dilacerado de Emha. O ato pelo quarto se inverteu. Agora era momento de Emha consolar Divina.

Passaram boas horas consolando uma a outra.

O consolo teve que dar trégua. A frágil mãe necessitou do amparo de uma das filhas. Pois dos oito filhos tido, dois morreu no mundo das drogas. Outro, pegou cinco anos da fundação casa, havendo então mais três anos e meio de a prisão cumprir. Os dois caçula devido a frágil situação da mãe, foram morar com um das tias maternas. Só lhe restou a duas, para dela cuidar.

Havia feito pouco mais de um ano que de maior Emha ficou. Foi de ontem surgiu a decisão de ela junto da irmã, de a mãe cuidar.

— Aproxime, Emha! – ordenou a frágil mãe sobre a cama. — Esperei e muito por este dia. Deus é minha testemunha viva de todos os últimos anos vivido. Ah, agora se tudo der certo, hei de morrer em paz! Por favor, não me interrompa! Apenas me ouça. Sei que te fiz sofrer e muito com as mentiras que te contei sobre seu pai. Pode me retribuir mentindo de que estaria me ouvindo. Preciso e muito de seu perdão. Enfim, quem sou eu para te obrigar a me perdoar? Sou tua mãe e não a dona do seu coração. Que pena ter me amadurecida tão tarde! Te fiz tanto mal, néh, minha filha? – choramingou a mãe, já na última frase, misericordiamente cariciando com as poucas forças lhe restada o rosto da sofrível filha. —Sabe filha, a vida me deu o troco. Enquanto estive boa de saúde, não fui digna de uma verdadeira mãe te dar a felicidade diante daquilo que você sempre sonhou: viver a vida na companhia do seu pai. Éh, minha filha, eu vacilei! Mas a vida me deu o troco. Viverá agora junto dele e não terei o gostinho de lhes atrapalhar. Que Deus e você me perdoem pela a covardia lhes pregado. Não você merecia viver o rancor de uma ex-mulher com o esposo, afinal, uma mulher seria normal correr o risco de se tornar uma ex, mas um filho, jamais deverá ter a ousadia de se tornar um ex-filho. Ex-filho não existe! Vá, minha filha! Não perca tempo com a sua errante mãe. Vá viver a vida que sempre mereceu e nunca me escondeu de querer viver junto dele. Sabe filha, Deus tem sido muito misercordioso comigo. Veja só, depois de tudo do que te fiz, Ele ainda ouviu as minhas preces! Não sei bem, se ouviu por misericórdia da minha alma ou por sofrimento da tua... Tem conversado muito com Deus, sobre a este teu sonho realizar? Espero que sim. Pois eu, como sua mãe, te confesso que eu sim. Conversei e muito. Tenho implorado de a este erro com os meus olhos, eu hei de alcançar o conserto do vacilo que cometi. Deus ouviu, filha! Deus cumpriu o desejo do meu coração. Deus me libertou do sufoco da minha alma. Tive medo de fechar os olhos e a esse equívoco não corrigi-lo.

Emha nos últimos tempos tem sido uma filha rebelde à própria mãe. Tudo era motivo de as duas baterem boca. Parecia mais duas irmãs. Muitas vezes, Emha a culpou pela vida que tivera.

Naquele dia foi diferente, Emha não retrucou. Ouviu o que pode. Brigou e muito com o coração. Enfrentou o coração sobre a uma bravura, mediante a cada palavra enunciada pela mãe. Dona Moabe não entendia. A mãe mediante o desespero de morrer e levar consigo entalado tudo do que desejara falar, nem percebeu ou muito menos decifrou o semblante da primogênita.

Teve um momento que Emha carinhosamente tocou aos lábios da mãe. Foi aí que mãe percebeu. A filha desejava falar.

— Se eu a perdoar, a senhora me perdoa? Eu sempre a amei? Mãe, eu fui tola. Não soube aproveitar a melhor mãe do mundo que Deus me deu.

— Que isto? – emocionou. — Está querendo me dizer que me perdoa?

— Eu sempre a amarei.

Ambas choraram. Ambas se abraçaram. Emha muito mais, afinal, a mãe já não tinha força necessária àquele momento.

O dia passou. Chegou o momento de Emha se encontrar com o mesmo cara do dia anterior. Homem cujo era desconhecido e misterioso, mas que agora sabia ser o tão sonhado pai.

O encontro não foi muito longe dali. Emha preocupada com a situação da mãe e com a ansiedade de tão breve agora conversar com o pai, antes mesmo de o encontro acontecer: o ligou. Alegou em detalhes a frágil situação da mãe. Foi de onde surgiu a ideia de levá-la para o hospital mais próximo de casa.

A mãe foi internada. Momento da qual Emha aproveitou e muito conversou com o pai. Ambos choraram. Emha percebeu que pela primeira vez, a mãe não mentiu sobre o pai.

— Temos tantas coisas para conversarmos. – perturbou Emha. — Mas por favor, não condena minha mãe!

— Relaxa! Não tenho nada a falar da sua mãe. Mãe é mãe. Aliás, se hoje eu a tenho, foi graças a ela. – pausou. — Sofri muito com a nossa separação. – riu ele, logo tendo o semblante dominado por uma angústia. — Mas você está aqui. Linda, crescida e bem tratada.

Emha riu:

— Dentro do limite. – riu novamente. — Dentro do limite dela, ela me deu o melhor. – pausou. — Senti muito a sua falta. Segundo a minha avó, éramos tão apegado quando viviamos juntos como uma família!

— Eu nunca te esqueci. Penei muito ao nos separarmos. Fui morar de favor, numa kitnet de um compadre de casamento nosso, lá em Paraisópolis. Nossa, que martírio! Não sabia o que era pior: morar de uma hora para outra numa kit net ou viver do nada longe de vocês a quem tanto amei. Pensei em você todos os dias. Chorei como um condenado.

— Demorou tanto em me procurar.

— Demorei muito para me reerguer. Vivi uma vida de miserável. Vivi bons tempos sem ter de onde tirar dinheiro: ou pagava o aluguel e sustentava a própria barriga ou corria o risco de nunca te ver. A vida tem sido muito cruel comigo.

— Sabe quantos anos eu tenho?

— Sei. Dezoito anos. Você foi a minha primeira filha. Nunca te esqueci. Era nos dias do teu aniversário que eu mais chorava. Sabe, eu sempre sonhei passar o seu aniversário junto de ti. Enfim, quem disse que tive escolha? Desejo nunca faltou.

— Me fala um pouco sobre nossa família? Meu irmãos, avós, tios...

Elmano riu:

— Você tem dois irmãos: Gilberto e Edésio. São gêmeos. – pausou ele, arrancando do bolso da jaquete uma foto e lhe passando. — Têm onze anos, vivem junto de mim e de sua madrasta, Tereza. Gente, boa! Há de gostar e muito dela. Foi ela que sempre me amparou nos meus momentos de angústia quando a saudade e o desespero de te ver me tomava.

Emha pegou a foto e insinuou olhar e muito a cada detalhes.

— Parece e muito com Divina. – riu. — Até parece que Divina e eu somos irmãs do mesmo pai.

Elmano riu:

— Impossível! Quando sua mãe me deixou, só tínhamos você. Disso me lembro bem.

— Eu sei. Mamãe sempre me falou disso. Apesar de falar muita mentira. Temos pouco tempo de diferença na idade: um ano e nove meses.

Elmano paralisou e esbugalhou os olhos na sua direção:

— Um ano e nove meses? – espantou, fazendo a contagem no dedo. — Você é de abril. Sua irmã é de janeiro. Separei de sua mãe no finalzinho de julho... se fosse uma ano a menos, eu juro que suspeitaria que ela fosse minha filha!

— Tem razão. Mas no final de dezembro, minha mãe já havia levado o meu primeiro padastro para dentro de casa. Sempre jurou que Divina era o filho dele.

— Que isso, não estou aqui para duvidar da sua mãe. Ela há de saber o que fala.

— Tem razão. – concluiu ela, repassando-o a foto. — Mas que Divina parece com meus irmãos, parecem.

Ambos se cruzaram os olhos:

— Pai, deixa eu te dar um abraço? Esperei tanto por isso.

O desejo se cumpriu. Abraçaram e ficaram longas horas no abraço.

— Odiei tanto minha mãe por tê-lo afastado de mim.

— Não a culpe. Eu também tive culpa. Errei e muito pelas amizades que deixei influenciar nossas vidas. Como me arrependo!

— Minha avô sempre na hora da briga com ela, nos lembrou das suas súplicas para o perdoar e o melhor, não separar de nós!

— É verdade! Mas um dia, você há de entendê-la! Vida de adulto é muito complicado. É muito chato tem hora.

— Tomara que o senhor esteja errado. Sempre achei minha infância um saco. Nunca tive minhas decisões respeitadas. Sempre fui obrigada a acatar decisões nunca curtidas. Foi por esse desespero de tão breve ser tona do meu nariz que cai na vida que levo. Procurei meu primeiro emprego, mas por falta de experiência na carteira, parei na vida que me restou. Aqui não precisei de experiência, só de paciência.

— Quer sair desta vida?

— É a coisa que mais quero.

— Foi para isso que estou aqui. Eu vim te buscar. Queria ter a chance de tê-la perto de mim.

Emha emocionou:

— Agora? Minha mãe está nas últimas. Não tenho força de a deixá-la. Fora a minha irmã Divina. Se eu sair daqui, quem cuidará delas? Tenho medo de minha irmã cair na mesma vida que a minha. Não quero isso a ela!

— Que mal te pergunte, mas o que a sua irmã faz?

— Está terminando o ensino médio. Entramos num acordo: se ela valorizasse os estudos e conseguisse uma bolsa de estudos, eu a ajudaria no que fosse preciso para não correr o risco da vida que levo, e o melhor, ajudaria no que fosse preciso para sairmos logo dessa vida. A vida é cruel aos que não tem estudos.

— Você tem um bom coração. Que pena ter dito um destino que nunca gostou!

— Queria tanto ter o poder te apagar todo o nosso passado e ter feito uma vida diferente. Com o senhor sempre pertinho de mim, não teria minha irmã por perto, mas quem sabe teria uma vida mais digna.

— Parece gostar e muito da sua irmã...

— Tem sido uma grande guerreira; sempre que precisei.

Suas conversas foram interrompida. Era do hospital solicitando urgente a presença das filhas de dona Moabe.

Elmano presente, teve que acompanhá-las.

Foi difícil assistir de perto a cena da filha cujo há dezessete anos não a via. O coração doía tanto. Não era o plano de verê-la assim. O plano era de mais felicidade.

O momento de as duas de se apartar da fragilizada mãe, chamou a atenção de Elmano. Ela conseguiu soltar a voz e implorá-lo para que somente ele continuasse ali. Pedido acatado, mas antes o sofrível pai levou a filha junto da irmã, numa sala de espera do hospital, e aos cuidados da psicóloga as deixou.

— Você venceu! Não vou estar mais aqui para o distanciar das meninas. Lutei tanto por vingança para que isso não acontecesse, mas não era isso o plano de Deus. Quem somos nós para O contrariar?

— Por mim, eu nunca teria separado de você. Sempre te amei.

— Eu também. – pausou. — Te amei tanto que não fui capaz de substitui-lo por ninguém. Oito tentativas, em todas você foi o primordial. Culpei-me por esses anos todos, a burrice que fiz. Ah, se por algum instante, você entrasse por aquela porta e me pedisse de volta. Que pena! A única chance que tive, estive de cabeça quente e joguei a sorte para o alto. Paguei caro. Tive uma filha revoltada. A herança que você me deixou, mas que por deslize de não saber trabalhar no coração dela, por muitos anos tive-a como uma inimiga. Não por mim, pois Deus é testemunha sempre a amei, mas por ela. Nunca me perdoou. Sabe, ela puxou a minha mãe. Sempre via em mim meu orgulho, tentava me corrigir sempre, enfim, o orgulho é cruel; é pior que olhos vendados. Nunca a escutei. Nunca a dei razão.

— Eu sempre a amei. No início de nossa separação tive um ranço tão grande por você, mas com o tempo te perdoei. Procurei enxergar a vida como um aprendizado.

— Aprendizado... foi isso que me faltou. Parei no tempo. Remi e muito contra a maré, contra a própria vida. Mas que bom, hoje você encontrou suas filhas.

Elmano nem se deu conta do desabafo. Acreditou que a ex, estaria delirando aos últimos momentos de vida.

— Preciso te confessar algo. Quando nos separamos, aos três meses sozinha descobri que estaria esperando Divina.

Elmano esbugalhou os olhos:

— De início te procurei aonde pude. Foi aí que descobri que foi para Minas Gerais. Sem condições psicológicas de se enfinhar num ônibus sem destino com uma no colo e outra no ventre, ainda mais sem saber por onde andava, orgulhosamente cai na besteira de passar por cima do que deveria ter feito. Arrumei um cara e fui morar com ele. Ele topou registrar a criança no nome dele. Vivíamos bem, quando dois anos juntos, ele me traiu. Fugiu pelo mundo a fora com outra.

— Divina é minha filha?

— Sim. Eu nunca contei isso a ela.

— Mas isso é impossível. Ela tem uma ano e nove meses de diferença entre Emha.

— Eu menti a idade dela para não pagar multa.

— Nossa! É muito bague para um dia só.

— Me perdoe...

— Quem sou eu para te condenar. Você cuidou muito de nossa maior joia.

— Cuidei, mas te distanciei.

— Éh, verdade. Mas agora é o momento de você se recuperar. As meninas te amam e precisa de você.

— Precisam nada. Fui uma péssima mãe. Menti e muito a elas.

— Mentiu por amor.

— Amor... – pausou ela. — Amor ou orgulho?

Elmano sentiu o lábios da ex se secarem. O frágil tom de voz perdeu de vez a força.

Por alguns instantes procurou chamá-la a fim de continuar a conversa. Caiu em si, a missão dela encerrou. Agora a missão era dele de com as duas pobres moças órfãs de mãe que o aguardavam na recepção do hospital.

Que reencontro ardoroso! Que reencontro amargo! Nunca passou pela cabeça de Elmano, de ele ser o mensageiro de um recado tão delicado a uma família enlutada. O mensageiro da morte ficou nas suas costas. Deve que ser forte e audacioso. Afinal, que reação teria as filhas órfãs de mãe? De uma boa recepção não haveria de lhe aguardar, após o recado. Seria aquilo o preço pelo o desejo de há anos ter pedido a Deus?

Que palavras haveria de Deus colocar na boca de Elmano sobre a partida da mãe de suas ambas filhas? De Emha argumento um pouco mais eficaz poderia ele dar? Ambos sabiam do destino que vida lhes pregou. Já Divina, que desculpa haveria de dar? Seria sútil ou eficaz já na partida da falecida mãe confessar-lhe que era ele o seu verdadeiro pai?