NOSSOS ELOS, NOSSA HISTÓRIA
Era o último dia dele em casa.
Kléber dormia muito tranquilo. Respirava fundo. Parecia que flutuava o corpo que já não cabia na beliche. Anestesiado, deixava uma parte do braço direito para fora do colchão como um cadáver numa cena de terror.
Não era terror. Era só paz. Para ele.
Ainda estava escuro. Madrugada. Eu deitava na cama de cima. Ele, na de baixo. Nem sempre foi assim.
Antigamente aquele quarto pertencera apenas a Kléber até o anúncio da chegada de um irmãozinho. Sabia que não era possível competir com um recém-nascido e deixaria de ser o centro das atenções. Sentiu-se destronado.
Ao chegar do hospital ele foi o único que não sorriu. No decorrer dos dias seguintes lhe incomodava tudo o que era meu: cheiro, choro e a chatice em forma de bebê que, mesmo pequenino, a presença daquele novo ser inundava toda a casa. Para meus pais, um rio de alegrias. Para Kleber, um dilúvio sem arca.
"Shhhh. Brinca mais baixo! O Tiaguinho (ou Guinho) está dormindo, Kléber!"
"Ele só dorme! Aff!"
"Então vai pro quarto!"
E ia batendo o pé só porque nunca mais ouvira a expressão "seu quarto".
Usufruíra dele por um bom tempo sozinho. Mas para algumas crianças é mais difícil repartir. E a primeira coisa compartilhada, depois que cresci um pouco, foi a cama. Na época nossos pais ainda não tinham comprado a beliche.
Kléber sentia o pé formigar e ensaiava mentalmente como seria me derrubar com um chute "sem querer". Sim, ele contou isso anos depois . Rimos muito.
Os brinquedos, os cuidados, os mimos paternos. Tudo era meu agora. Inclusive seu ódio, seu olhar fulminante, seus beliscões em minhas bochechas gorduchas.
O tempo, porém, que afia os espinhos mais cruéis da flor, também reveste de beleza os lírios do campo. A inveja do mais velho durou até as primeiras palavras saírem de minha boquinha.
O primeiro nome que aprendi a falar foi o dele: 'Kébi".
De repente sua carranca se liquefez em carinho pelo caçulinha. Passou a amá-lo tanto quanto um porquinho-da-índia (o primeiro apelido que ganhei). Matou num abraço seu ódio e vivia fazendo caretas, dançando e me instigando a rir com o que quer que fosse. Queria o irmãozinho alegre de qualquer jeito.
Não precisava muito. Bastava ele ali.
Ensinou-me a contar de um até dez; depois até vinte; a diferenciar rosa de roxo, branco de preto, azul de vermelho, amarelo de verde; a mudar de canal com o controle da televisão, a aumentar o som, a colocar a mamadeira vazia na pia. A comer o danone com colherzinha. Tudo. Até alguns palavrões.
"Apaliga! Apaliga!"
"Que isso, Tiago! Onde você aprendeu esse nome, menino?"
"Kébi"
Aprendi a dormir com a luz apagada graças ao meu irmão mais velho, que esperava que o caçula pegasse no sono para desligar a lâmpada.
"Calma que não tem monstro embaixo da cama, não. Tá bem?"
Não havia monstros ali. Não enquanto Kléber dormia comigo.
A beliche chegou. As brincadeiras de pular também. Fiquei com a de cima. Ele, na de baixo.
Algumas vezes o "nhinc nhinc" metálico da cama de dois andares fazia fugir o sono. Era Kléber se ajeitando, ciscando no ninho, testando posições onde colocar o travesseiro. Acreditava na "ergonomia onírica". Dizia que se o corpo estivesse do jeito certo na cama, totalmente relaxado, o sonho caía feito luva:
"O sono só fica perfeito quando se deita na posição certa e se respira de modo correto. Daí o cérebro encaixa tudo e te faz voar".
Não sei se a teoria fazia sentido, tanto porque eu nunca sabia em que posição dormira na noite anterior, quanto pelo fato de que ele namorou anos com a insônia.
Por noites intermináveis Kléber não dormia. Quando sim, já era em alta madrugada. Virava-se feito um bife na chapa, de um lado para o outro. Ora com a cara na parede, ora olhando para o nada. Às vezes falava sozinho. Murmurava por causa de tudo: dívidas, passeios que deram errado, amigos falsos e fiéis, trabalhos de escola, namoradas, amantes, desafetos, qual profissão iria seguir, qual faculdade iria cursar, aceitação pessoal e outras frescuras de irmão mais velho.
No meu caso, o que me arrancava a soneira era passar de fase no minigame quebrando o recorde de 100.000 pontos no "Monta Monta" (Só depois de velho descobri que o jogo se chamava Tetris), ler repetidamente meus gibis do Chico Bento e esperar meus pais dormirem para, como um gato, pular da cama, descer as escadas, ir até a cozinha e comer duas colheradas de achocolatado em pó puro sem que ninguém acordasse.
Ou melhor; quase ninguém.
Kléber sabia dos meus crimes de criança (alguns). Em certas ocasiões o encontrava de olhos abertos com os fones de ouvido e a cabeça apoiada pelo antebraço como uma estátua romana. Nunca me denunciou ou censurou por isso. Eu voltava para a cama e ele ainda ficava acordado. Rindo, chorando, resmungando, paquerando. Jamais em silêncio.
Isso foi assim por inúmeras noites.
Naquela não.
Ele dormia tranquilo. Até demais.
Quieto como um caixão. Sem ruído nenhum, a não ser do quase ronco que arranhava sua garganta. E sei de onde saía toda essa tranquilidade: o dia seguinte seria seu casamento.
Eu que perdi o sono.
Antes de meu irmão mais velho conhecer sua futura esposa, passávamos boa parte do tempo juntos. Tínhamos alguns assuntos em comum. Não todos, mas eram esses poucos elos que muito nos uniam.
Gostávamos de assistir Dragon Ball juntos. Quando me buscava na escola, vinha de bicicleta (emprestada de algum amigo) para deslizarmos velozmente pelas ruas asfaltadas até chegarmos em casa, irmos para a frente da televisão e ligar na TV Globinho. Era uma religião.
Já na adolescência foram os games. Sempre fomos viciados nisso. Gastávamos nossas muitas moedas comprando fichas num bar perto de casa jogando The King Of Fighters. Às vezes ele empurrava seu corpo em cima do meu para me atrapalhar minhas mãos no controle e se livrar de tomar um combo violento seguido de um golpe especial. Era o tempo exato para Kléber vencer. Eu ficava irritado, mas durava pouco tempo. Na mesma hora comprávamos outra.
Quando não tínhamos dinheiro tentávamos fazer "aparecer" um crédito ligando e desligando a máquina sem que o dono percebesse. Nunca deu certo.
Também curtíamos ir na casa de videogames (na verdade era só uma garagem) onde por um real jogávamos uma hora. Cada cédula verde com um beija-flor era muito valorizada por nós. Antes de irmos, tínhamos que arrumar a casa por ordem onipresente da nossa mãe. Então Kléber ligava o som bem alto no cd do Legião Urbana. O álbum era o Mais Do Mesmo. Decorei quase todas as músicas.
Ele lavava a louça. Eu secava. E ambos cantávamos nossa música preferida. Tempo Perdido, de Renato Russo:
"Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou.
Mas tenho muito tempo,
Temos todo o tempo do mundo."
Mentira. Não tínhamos. Não teríamos.
Anos se passaram e ele conheceu uma moça. Com essa primeira namorada vieram outros relacionamentos, outros amigos. Outros elos que fizeram com que o nosso diminuísse em frequência, mas não em intensidade.
Kléber se vestia bem. Tinha bom gosto para filmes e era durão quando necessário. Todas as crianças da rua o respeitavam. Algumas o temiam. Quando eu o imitava, tentando parecer homem como ele, riam e ignoravam.
Certa vez um valentão quis me pegar na escola sem motivo nenhum. Infelizmente teve o azar de encontrar meu irmão primeiro, que lançou mão de um pedaço de pau, encarou o moleque nos olhos e disse:
"Se você mexer com ele outra vez, eu vou enfiar esse pau inteiro no seu rabo. Tá entendendo?"
Dos dois irmãos, Tiago, ou Guinho, como me chamam, era covarde, lerdo, sem malícia nenhuma.
Kléber era firme, decidido e durão. Por vezes cruel. Comigo também. Zombava de minha gordura saliente, meu cabelo mal penteado. Das roupas que o caçula usava. Abusava de minha ingenuidade para rir com seus amigos. Eu nada sabia, então não ligava.
Uma noite tive um pesadelo e acordei todo mijado:
"Kléber, tive um sonho feio"
"Ai, saco! Que é, hein? Toda a hora me enchendo. Foi só um pesadelo. Volta pra cama e dorme!"
Comecei a chorar. Ele se irritou mais ainda. Ameaçou me bater se não voltasse para a beliche. Quando percebeu que eu estava todo molhado no shorts e nas pernas (e também porque corria o risco de acordar meus pais com meu soluço), correu comigo para o banheiro, me pôs debaixo do chuveiro com água morna, fez com que eu tomasse banho e depois trocou minha roupa.
"Vem. Deita aqui, vai."
Peguei no sono rapidamente quando deitei em sua cama, mas pude ver de relance que no celular jogado no travesseiro estava aberta a caixa de mensagens com uma moça chamada Adriana.
A mesma com que ele começou a namorar. Firmou noivado e casou.
Parece que o tempo voou, feito uma flecha que se distancia das outras na aljava para atingir seu alvo final. Kléber passava mais tempo com sua namorada do que comigo. Saía mais com ela. Já não colocava o cd para ouvirmos juntos. Usava fone. Inúmeras vezes joguei sozinho no bar. Parei de frequentar a garagem de videogames. Brinquei sozinho. Divertia-me sozinho.
Mas desde quando nasci ainda não acostumara a ser sozinho. Era isso que a vida me reservava.
Naquela noite Kléber dormiria pela última vez no quarto que foi seu reino por anos. Reino esse que aprendera a dividir comigo. Seus brinquedos, suas roupas quando não cabiam mais nele e passavam para mim. Ainda tenho algumas camisas horríveis que meu irmão parou de usar. Não porque estavam apertadas, e sim porque saíram de moda. Então ficaram comigo. Caridade dupla. Livrava o mais velho de se vestir mal e supria a falta de roupa do mais novo. Será tripla se pensarmos na economia que meus pais tiveram.
Na manhã seguinte Kléber casaria no civil e a noite no religioso. Aliás, foi ele quem me fez frequentar a igreja. Seu motivo de ir fora Adriana. E o meu fora sua companhia.
Pulei da cama. Fiquei observando meu irmão dormir.
Na alta madrugada pensei em acordá-lo. Falar o quanto o amava. Agradecer por tudo que fizera. Ou pedir que ainda jogasse mais uma partida comigo, numa espécie de "saideira". Que lesse outra história para mim. Até que me deixasse dormir em sua cama só mais uma vez.
Toquei-o. Ele abriu os olhos:
"Oi, Guinho. O que foi?"
As palavras não saíram. A boca até tremeu uma frase, porém foi abortada por um sentimento:
"Eu não sou mais criança. Que frescura. Que mico"
Kléber continuava olhando sonolento para mim:
"Que foi, Guinho. Fala?"
"Nada. Nada. Desculpa aí."
Voltou a dormir. Eu não.
A noite, a igreja estava linda. O tapete vermelho estendido. As decorações. As luminárias. Os bancos com faixas vermelhas. O altar bem arrumado, os padrinhos que entravam enfileirados e uma enorme foto dele e da noiva pendurado na parede.
Quando a noiva entrou, ela estava linda. Kléber chorava de alegria ao ver que Adriana se aproximava radiante. Todos aplaudiam, tiravam fotos e se emocionavam. Meus pais estavam corados por ver o filho mais velho seguindo seu destino como a flecha na mão do valente. Agora eu sei o que meu irmão sentiu quando cheguei do hospital, porque fui o único que não sorri. Era o último dia dele em casa. Era um casamento, mas parecia um luto para mim.
A cerimônia teve início. Somente o pastor falava. Fizeram os votos. Trouxeram as alianças.
Ela disse "Sim".
Ele disse "Sim".
Após um silêncio alegre e solene, o pastor falou:
"Diante disso, eu gostaria de perguntar se há alguém entre nós que não deseja que esse casamento se realize. Se há alguém entre nós que é contra essa união, que fale agora ou cale-se para sempre!"
"EU!"
Todos me olharam arregalados. Principalmente o de Kléber.
Saltei do banco onde estava do mesmo jeito que saltava da cama. Corri em direção ao meu irmão e o abracei aos prantos:
"POR FAVOR, KLÉBER! NÃO VAI! NÃO VAI! FICA COMIGO! OS PAIS NÃO GOSTAM DE MIM! SÓ GOSTAM DE VOCÊ! SÓ FALAM BEM DE VOCÊ! NUNCA FALARAM BEM DE MIM PARA OS OUTROS! NINGUÉM ME RESPEITA SEM VOCÊ! NINGUÉM QUER FICAR COMIGO NA ESCOLA, NA RUA! TODOS ME CHAMAM DE GORDO BUNDÃO! SÓ VOCÊ AINDA ME AMA! NÃO ME DEIXA SOZINHO, POR FAVOR! POR FAVOR, NÃO ME DEIXA SOZINHO!"
A cena seria perversamente intensa, se isso tivesse acontecido de verdade. Pois foi tudo na minha mente. Assim como ele não me chutou da cama, não fiz nada. Calei-me para sempre.
"Se não há ninguém, pelo poder que me foi concedido, como ministro do evangelho, eu vos declaro marido e mulher!"
Aplausos! Gritos! Lágrimas! Alegria!
Eles viajariam naquela mesma noite após a festa. Ficariam num hotel e depois iriam morar em Recife. Agora cuidaria de sua nova família e não mais do caçula.
Kléber se despediu de mim num abraço seco. Sei que foi sem querer. Estava exausto de um dia corrido, ansioso para contrair núpcias e finalmente, consciente disso ou não, assinar a sua carta de alforria e obter a liberdade que um dia o irmão mais novo lhe tirou.
Sem querer também.
"Eu venho visitar vocês no fim do ano"
Quando aquele carro partiu, eu e meus pais voltamos para casa. Eles já dormiram. Eu não.
O quarto permanece o mesmo, porém no lugar de Kléber, está o monstro que finalmente apareceu. Não surgiu de debaixo da cama nem das paredes. Veio comigo do casamento. Feio e gelado. O nome dele é Solidão.
Comecei a dormir na cama de baixo. Eu e o monstro invisível. E quando tenho medo, ou demoro a dormir porque a luz está apagada, ou a Solidão tenta me travar, coloco os fones de ouvido que meu irmão me deu e começo a ouvir aquela que foi a música preferida dele enquanto estava comigo:
"Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes
Acesas agora
O que foi escondido
É o que se escondeu
E o que foi prometido
Ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens
Tão jovens! Tão jovens!"