Aquele dia
Quando viu tais olhos, quis arrancá-los e devorá-los, necromântico e ávido. Sentiu como se o contorno de sua aura se desfizesse, feito uma linha de cera sob o efeito da lava, derretendo rapidamente e se perdendo numa cachoeira de novidades. A inocência pulou numa moto velha e disse adeus. Viu os lábios se moverem, diante de si, mas nada ouviu. Retirou os fones de ouvido. Tremeu. Encorajado de súbito, na ânsia de existir, desejou fazer-se em tinta e ser tatuado naquelas retinas, alocado de forma a viver como um demônio sempre visível por tais íris azuladas.
Compenetrado, psicopata, atrevido e tolo. Confundiu-se consigo mesmo. Poros vomitaram nervosismo diante da simples hipótese de ter de se comunicar.
Pause no walkman.
Fez-se alguém capaz, sociável, desprovido de doença social, insaciável pelo que não sabia ser o que é. Falou. Ouviu. Tocaram as mãos.
Meu nome é tal. Qual seu nome?
Nome. Nome é só nome. Importante é o sofá velho. A camurça surrada sobre si também sustentava o corpo que continha tais olhos. Era só o que importava. O mundo acabou. Falou mais e mais, desconexo, olhando o relógio e torcendo para que o tempo parasse. Ouviu. Palpitou. Auscultou-se usando as próprias artérias como instrumento. Será que se parar o ponteiro, tudo para junto? A primeira cerveja. A primeira conversa sem supervisão. O primeiro porão barulhento. O primeiro grupo sujo com instrumentos desafinados. A primeira. Ela também é a primeira. Primeira de que, exatamente? Era só a primeira e que fosse de tudo. Que fosse.
Ela sorriu. Tá rindo do quê? De mim? O medo veio com uma foice, arrancando-lhe a paz natural que os dentes expunham. Eu estou bem… Estou bem… Isto aqui tá bom… Foi-se lançando. Arremessou-se. Desesperou-se, pois o abismo estava grafitado com mensagens sobre a impossibilidade de retorno. Quem mais já se jogou daqui? Percebendo que nem tudo são olhos, desejou a caverna de carne, úmida, que abrigava aqueles dentes. Como eu quero esses dentes… Quero lambê-los! Se, para si, o mundo é uma gravura refletida em seus próprios olhos, notou em si seu próprio mundo, assim o universo que o circunda passou a fazer simbiose com sua existência. Moveu-se na órbita, rumo à colisão. Pra longe da solidão. Para uma nova solidão, desconhecida, acompanhada. Ela empurrou o azul de seus globos, alojados em suas órbitas, de encontro ao mundo que ele definiu ser para si mesmo. Seus crânios se encaixaram, iniciando uma dança silenciosa entre as lesmas expulsas de suas cavernas dentadas. O primeiro. A primeira.