NO MEIO DA PANDEMIA INSANA
Mafalda já não sabia bem a quantas andava nem o que fazia e muito menos o que queria.Enfim, vegetava e quase desesperava, apanhada desprevenida no vórtice da pandemia.
Despertava tarde, sobressaltada depois de um sono inconsequente - venda nos olhos, tampões nos ouvidos, penico na cabeceira, á mão de semear para as vontades súbitas de chichi a meio da madrugada e miados do gato a reclamar com fome.
O primeiro pensamento que a assolava repetia-se todas as manhãs:
”Já não estou a bater bem!Jesus!”
Às vezes o sol brilhava e ela aproveitava para se arranjar num ápice e sair.Quando se estava a maquilhar, interrompia contrafeita e protestava ao espelho “Mas para quê pôr baton se tenho que usar máscara?”.
No bairro, na rua as pessoas andavam depressa a olhar sempre em frente como se fossem marrar com um poste em linha recta.Havia as filas, os postigos, os gels desinfectantes e as lojas dos chineses e dos árabes chamados Alibabás que vendiam fruta no limiar da validade e que abarrotavam de gente até à estrada.Os carros da polícia passavam ronceiros a vigiar os abusos.Um bulício frenético e quase psicopata sentia-se mas não se via.Como uma nova estirpe.Mas as outras lojas, as portuguesas, fechavam, cobriam-se de papeis pardos e anunciavam o seu encerramento definitivo.
Ah sim, a economia,as actividades de intermediação, o comércio e os serviços de rastos…a ciência económica sem teoria em que se apoiasse num cenário imprevisto, mais estranho e desusado que o das catástrofes naturais.Com os economistas perplexos.
Ela entrava no super, prestes e célere e encomendava as compras da semana para entrega ao domicílio.Percorria os corredores com uma lista nas mãos e os óculos embaciados coma máscara na ponta do nariz.Trocava amiúde os artigos por engano.
Havia sempre a ideia de ocupar a semana com afazeres diversos para um combate sem tréguas ao tédio agora que fazer compras de roupa desnecessária ou de mais um par de sapatos para a colecção estavam fora de alcance com o confinamento imposto por decreto.
Mafalda era uma senhora elegante, ainda bela no seu estado de aposentada, casada, mãe e avó.Tinha sessenta e cinco anos mas parecia antes cinquenta e nove, esplendidamente conservados com cologénio, cremes de beleza e massagens localizadas.
Mas tirando a ida semanal ao cabeleireiro, a manicure e a pedicure não havia grande coisa para planear e executar de acordo com um plano e um horário.
Por isso, muitas vezes soprava enfadada e enclausurada em casa de manhã à noite.Fazia sopas de letras, zappings intermináveis na TV, duche a meio da tarde e passeios à volta dos quarteirões, sem destino para desopilar e descontrair.
-João, traz-me os binóculos que vou ver o cinema sem estrelas.
Sem isso,não havia passatempo que servisse.Nem regar as plantas na varanda nem ver clips ternurentos e humoristicos de bichos no telemóvel.Por exemplo o das catatuas palradoras e tagarelas.
As cadelas do número 31 ao lado subiam e desciam vezes sem conta a escada de serviço como duas gémeas amestradas num número de music-hall decadente.O gato siamês “dono do pedaço” vigiava do alto de telhado a fauna dos quintais.
- João vem cá ver isto depressa!Há um casal a dançar na sala do andar devoluto aquele onde os gatos entram pelo vidro partido da marquise e marcam território nos rodapés dos quartos.Nem sei como aguentam, deve cheirar horrivelmente lá dentro…traz os binóculos para não perdermos isto!
Era verdade.Um homem e uma mulher de meia idade, enlaçados no meio da divisão vazia a valsar ao som do telemóvel.Dançavam enlevados e de máscaras como uma ópera bufa interminável passada no carnaval em Veneza.
O marido, espectáculo por espectáculo, sempre preferia deleitar-se com a vizinha nova da frente a sair do duche e a esfregar com energia os opulentos seios e o intervalo entre as pernas roliças, esquecendo-se que a janela não tinha cortinas e dava para as traseiras dos prédios vizinhos.
As notícias variavam desconcertantes.Já não se sabia ao certo se devia tomar a vacina ou fugir a sete pés.O Governo prestes a sucumbir de cansaço.A Ministra da Saúde até já de costas voltadas para a Diretora Geral de Saúde, insigne cientista exausta e com ar de “ chupada das carochas” e que inclusivamente já fora também tocada pelo temível vírus.
- Já ninguém se entende!
Os mortos continuavam às dezenas, os infectados às centenas nas estatísticas e os gráficos retorcidos e pululantes que os telejornais apresentavam em jeito de ameaça e alerta assustadores.
Comentadores e jornalistas a mandarem-se calar uns aos outros e a semear a discórdia e a confusão nos media junto de populações incontroláveis
Mafalda insistia nos seus rituais,telefonar ao filho, à neta,jantar cedíssimo, comer os flocos, fechar os estores de todas as janelas ainda antes de anoitecer.
Deitar-se cedo para se levantar tarde.Não esquecer os relaxantes e os estabilizadores de humor…um dia igual ao outro.
“Parou.Congela.
Não penses em nada.
Dorme!”
E quando o sono finalmente chegava, pé ante pé, um vislumbre de esperança, um sorriso breve antes do escuro total.