XEQUE-MATE (uma tragicomédia)

Bichano de sorte! Descreveu uma parábola perfeita - que é aquela curva besta que se dá ares de intelectual - e foi bater seco no encosto de lona bamba da velha cadeira de praia largada no canto da sacada do 23º andar do prédio fronteiro. A violência do choque quase tombou a cadeira que ficou em dois pés, estremeceu, ficou em dúvida e voltou ao chão. O gato deslizou para o assento vagarosamente como se não fizesse parte do acontecimento, recostou-se e dormiu.

Primeiro foi o lençol, depois a almofada e agora o coitado do Angorá. O lençol saiu pela janela, embolado, logo se abriu, tentou um paraquedas, não deu, desceu ziguezagueando como folha seca até pousar no meio da piscina infantil. A almofada caiu sem graça, como semi-bêbado que escorrega na calçada: ensaiou um passo, dois, pediu desculpas e lá se foi pousar na quina da mesma piscina infantil.

A eterna vigilante do andar de baixo não perdeu um só lance: viu o lençol, a almofada e preconizou: "agora vai o gato". Experiente, ela sabia das coisas.

Depois da quinta dose do seu destilado favorito, Palhares levantou-se com dificuldade, apoiou-se no espaldar da cadeira, pigarreou para limpar a garganta e cantarolando o "Trem das 11" - "só amanhã, de manhã" - com passos incertos, foi na direção do banheiro. Precisava de um bom banho antes de dormir. No banheiro, com tanta luz e todos aqueles azulejos quase brancos, estava enxergando tudo meio embaçado. A fadiga não ajudava. Quem sabe apenas uma lavada nas 'partes fundamentais' bastaria...

A mulher apareceu e ocupou todo o espaço da porta da dependência. Irritada com a bebedeira e a desordem em que ele deixara a sala, vociferou, pediu, insistiu com ele para não repetir o comportamento costumeiro. Ele deu de ombros e ficou em silêncio. O clima piorou; a chuva não era mais de outono, prenunciavam-se raios e trovões.

Ela relembrou as outras vezes: infinitas, segundo ela; uma ou outra comemoração, segundo ele. Dessa vez, ele até tinha sua razão: comemorava a conquista do campeonato quadrangular pelo seu time do coração, um fato inédito. Lamentaram-se, ele de não ter casado com uma mulher compreensiva e companheira e ela, com um homem sóbrio.

Nessas ocasiões, uma névoa que nenhuma outra pessoa veria, tomava conta do ambiente empanando a vista até que os dois não mais se avistavam, um em frente ao outro. Ainda assim, continuavam juntos.

A coisa ficou urgente, agora ele precisava se deitar. Empurrou a mulher e saiu do banheiro cambaleando, virou em direção ao quarto, a cabeça estava muito pesada e o pescoço, quase sem forças para sustentá-la, mais hora, menos hora, ia cair... Caiu!

E arrastou atrás de si o corpo pesado, flácido e cansado. O estrondo do estrado da cama quebrando foi ouvido três andares abaixo. Chegaram a ligar para a portaria temendo que o prédio estivesse passando por um abalo. Da entrada, o Jesuíno que conhecia bem os Palhares do 25º - tanto a carraspana quanto o sermão - tranquilizou-os de que a coisa era passageira.

Uns dizem que depois do gato, ele jogou a mulher. Outros dizem que a viram pular; se for verdade, é provável que Arminda quiz impedir uma nova temporada de encenações enfadonhas daquela peça que eles já representavam sem ensaio e sem aplausos por muitas temporadas. O certo é que ela foi achada toda desconjuntada, a cabeça loira rachada, ao lado da mesma piscina infantil.

Quem lucrou foi o morador do prédio fronteiro que nunca entendeu como o belo Angorá branco que agora dividia com ele o apartamento, apareceu na sacada do seu andar.

.FIM.