A BÍBLIA DE GUTEMBERG

A chuva intermitente dos últimos meses fez com que o teto do prédio onde funciona o Instituto Histórico viesse abaixo. Tão antigo quanto as grossas paredes de tijolo batido, o madeiramento que sustentava as grossas telhas canal, feitas nas coxas dos escravos do Coronal Ioiô Carneiro, não aguentou o peso, porque apesar de cozidas e em alguns pontos vitrificadas, criaram-se rachaduras nelas pelos longos anos de exposição ao sol inclemente e as goteiras das infiltrações aceleraram o processo de decomposição nas pontas das madeiras em contato com as paredes úmidas.

O sabor desagradável dessas madeiras, deixaram-nas fora do cardápio dos cupins que, sem cerimônia, atacavam as molduras das portas e das janelas com vidros finamente esmerilhados.

Por conta desse desastre, todo acervo do Instituto foi transferido para a biblioteca central, enquanto aguardava a restauração do prédio.

A sra. Eugênia Alvarenga, bibliotecária chefe, teve que remanejar toda a programação mensal para acomodar as reuniões dos membros do Instituto que, juntamente com os da Academia de Letras, Sarau Revelação, Sarau Veteranos e as Oficinas de Redação, de Contação de Histórias, de Origami, de Brinquedos Populares, de Marionetes e de Manipulação de Bonecos, também passariam a acontecer nos salões da biblioteca em cujas prateleiras jaziam mais de um milhão de títulos em diversas apresentações, estilos literários e idiomas.

A joia desse acervo era um raríssimo exemplar da Bíblia de Gutemberg datado de 1455, guardado a sete chaves e que era mostrado ao público somente por ocasião do aniversário da biblioteca, devidamente protegido por caixa de vidro e com escolta da polícia militar durante o expediente. Quando as portas da biblioteca eram fechadas, a bíblia era levada para permanecer guardada até o próximo ano no cofre cujo local era conhecido somente por dois dos curadores que também sabiam apenas a metade do segredo.

Tanta precaução se justificava pelo valor astronômico do livro feito de velino, pergaminho finíssimo, escrito em latim vulgar, artisticamente decorado e em perfeito estado de conservação.

Já passava do meio dia quando o sargento Hidalgo mandou que o soldado Vitório fosse almoçar, pois a biblioteca estava vazia e, conforme a programação, somente a partir das 14h é que seriam iniciadas as oficinas com a participação dos alunos das escolas agendadas.

Sentado no cadeirão ao lado do belo exemplar da bíblia de Gutemberg, o sargento só acordou com os gritos de fogo, fogo, fogo vindo da área externa do prédio.

A biblioteca estava em chamas e o expositor havia sumido.

O sargento conseguiu sair do prédio enquanto as labaredas se espalhavam como rastilhos de pólvora, devorando as estantes e os livros, revistas, jornais que compunham o rico acervo da biblioteca.

Os jatos d’água dos bombeiros destruíram tudo o que o fogo não dera conta.

Durante o rescaldo já corria a boca miúda, fato que depois foi confirmado pela polícia técnica, que o incêndio havia sido proposital, talvez para efetuarem o roubo da bíblia.

A população elegeu imediatamente o sargento Hidalgo de Aragão como o suspeito número um do roubo, mesmo porque, de vez em quando, ele falava com um não sei quem, ao celular, numa língua avessada que lembrava o Espanhol.

Surgiram boatos de que ele tinha conexão com traficantes e colecionadores de obras raras, ligações com os mais famosos museus da Europa, com o submundo do Vaticano, milionários chineses, magnatas do petróleo, eugenistas multimilionários e famílias dos Illuminati.

Entretanto, ninguém sabia que o responsável pelo sumiço do livro raro era Manezinho, o rapazote amalucado, filho da parteira Maria Porcina, que passava os dias na praça em frente à biblioteca e que, quando ele viu a fumaça saindo pelas janelas do prédio, entrou no salão sem acordar o sargento, retirou o expositor de vidro e o escondeu no depósito de material da marcenaria do Dom Vitorio Vechio, carpinteiro italiano exímio fabricante de móveis de luxo.

Duas semanas depois do ocorrido, quando o inquérito já tinha mais de quinhentas páginas de interrogatórios, prisões já tinham sido efetuadas, o sargento imediatamente transferido para a capital estava respondendo a inquérito militar com possibilidade de ser expulso da corporação, o roubo e as ligações clandestinas dos suspeitos eram o prato principal de todas as conversas em família ou nos bares da cidade.

Foi em meio a esse burburinho, quase caos social que, indo ao depósito para pegar material, Dom Vitório, por puro acaso, encontrou a caixa de vidro contendo a bíblia e a devolveu à bibliotecária.

Um fato amplamente comentado à boca miúda em todos os ambientes, nesses tempos de desconfiança generalizada, onde todos eram ao mesmo tempo suspeitos, acusadores e defensores foi a tranquilidade demonstrada pela sra. Eugênia Alvarenga de quem se esperava, ao menos, uma demonstração de preocupação e de desalento pela perda de tal preciosidade.

Quando ela falava no caso se referia apenas ao acervo perdido e a dificuldade que teriam para repor, pelo menos, parte dele.

Entretanto o que todos ignoravam é que ela, já prevendo a cobiça dos traficantes e sabendo da fragilidade do aparato de segurança, havia mandado fazer uma cópia da capa, de algumas páginas de um dos livros da bíblia e montado a réplica cenográfica enquanto o original permanecia muito bem guardado numa caixa de cedro forrada de chumbo dentro de uma cavidade disfarçada por lambri, na grossa parede de taipa no sótão do casarão aonde ela morava e que pertencia à sua família desde o século dezoito.