A GRANDE VIAGEM DO PEQUENO HOMEM AMARELO

A tarde estava quente, abafada.

A grossa camada de nuvens que se sobrepunha à poluição tampava como uma grande tampa de panela, o topo dos edifícios.

Os escapamentos dos veículos tornavam o ar cinzento, fumacento, quente, quase irrespirável.

Repentinamente uma lufada de vento fez voarem desordenadamente panfletos e embalagens plásticas que se misturavam a pontas de cigarros e até algumas folhas secas de alguma árvore sobrevivente, naquela rua do centro da cidade de São Paulo.

Um trovão soou como a explosão de algum transformador, ribombando por entre os prédios altos.

E a chuva grossa começou.

O Sr.Takeshi estava acompanhado de seu filho Toshio, e os dois atravessavam uma das ruas principais da grande metrópole, quando o aguaceiro desabou acompanhado de rajadas de vento que viravam alguns prudentes guarda-chuvas pelo avesso.

Procurando se molhar o menos possível, os dois homens corriam por entre os carros para atravessar a rua e tentarem abrigar-se sob alguma marquise ou nalguma casa comercial, quando Takeshi pisou sobre a tampa metálica de um bueiro desses que ficam no meio da rua.

A superfície metálica molhada; a sola do sapato emborrachada; um escorregão.

E tudo ficou escuro de repente...

Takeshi não conseguia se mover nem falar. Não sentia nada. Sentia que seu corpo estava preso à cama. Seus braços estavam amarrados e as pernas também. Ouvia as pessoas conversando ao seu redor. Mas não podia falar. Ouvia seu filho perguntar ao médico até quando ele ficaria ali assim. E ouviu também o médico responder que já haviam feito todo o possível e que as chances de sobrevivência após o traumatismo craniano que ele sofrera, era de 20% e que a família pedisse a Deus por um milagre, pois ele estava nas Mãos de Deus e só Ele poderia salvá-lo.

Takeshi ouvia sua esposa chorando por ele, mas não conseguia dizer a ela nem ao seu filho, que estava bem. Que não sentia nenhuma dor. Que os ouvia falando e os via ao redor do leito em que seu corpo estava naquela UTI do Hospital, lá em baixo, como se ele estivesse flutuando pelo quarto, leve, colado ao teto como um balão de gaz que houvesse escapado das mãos de alguma criança.

E ele não estava mais naquela cama.

Uma força irresistível o arrastava por um túnel muito escuro, cuja saída minúscula a princípio, ia ficando cada vez maior e cada vez mais rapidamente a velocidade vertiginosa o conduzia para uma luz muito forte, de um colorido maravilhoso, indescritível que o atraiam para o final do túnel.

Mas ele mesmo deslumbrado pelas luzas, não queria ir. Sentia-se deitado, arrastado com os pés para a frente, em direção da luz. Mas sentia que algo o segurava e a velocidade começou a diminuir.

Então começou a pensar que não poderia ir, pois tinha uma missão a cumprir e precisava voltar. Quanto mais pensava menor ficava a velocidade que o atraia. Sentia que alguém o segurava passando os braços por baixo dos seus braços. Tentou voltar-se para ver quem o segurava, mas só conseguiu ver dois braços usando uma camiseta de mangas curtas muito, muito branca e que o seguravam firmemente pelas axilas. A luta entre as duas forças que o disputavam era tremenda. As luzes eram deslumbrantemente maravilhosas e ele quase que cedia e principiava ser arrastado para o outro lado do túnel. Mas aí lembrava-se da “missão a cumprir”, então os dois braços ganhavam força e o puxavam de volta. Takeshi foi ficando cansado...

Aí o panorama se transformou. A paisagem era belíssima. Um rio de uns 2 ou 3 metros de profundidade, absolutamente límpido, com muitas pessoas pescando. Ele gostava de pescar. E queria ficar ali, mas lembrou-se de que não podia ficar por causa da tal missão a cumprir.

Nessa paisagem linda havia um enorme teatro. Takeshi entrou. Alguém cantava. O palco ficava muito distante e ele não conseguia ver quem estava cantando. Parecia ser uma ópera. Havia uma mulher que cantava com o homem, que deveria ser o tenor. Sua voz era maravilhosa, mas a música era muito, muito triste. Takeshi sentiu que havia alguém ao seu lado. Olhou e viu o cantor que estava lá no palco, ali ao seu lado. Sem parar de cantar, o tenor aparecia ora no palco, ora ao seu lado, sem que Takeshi conseguisse entender como ele fazia aquilo.

As roupas do cantor eram do tipo de um nobre francês e ele usava um chapéu parecido com os dos pintores renascentistas, como uma grande boina caída para o lado.. A canção prosseguia sem parar. Linda e extremamente triste. Takeshi começou a observar e percebeu que estava num cenário.

Era um lindo caminho, mas em sua volta havia abismos profundos. Ele via umas construções sobre esses abismos das quais os pedreiros despencavam para a profundeza insondável gritando.

As imagens prendiam sua atenção e ele ficava deslumbrado a cada nova visão. Mas então sua consciência o chamava de volta. Não podia continuar ali. Tinha uma missão a cumprir...

Então viu-se num imenso quarto de hospital onde haviam mais de 300 leitos a sua volta. Todos os leitos eram numerados e o seu era nº280. Todos eram aidéticos terminais e iam morrendo por ordem numérica em ordem crescente. Uma voz ia chamando e eles iam para a morte e não voltavam mais.

Takeshi ao se defrontar com aquela situação pensou: - “Não sou aidético e não posso nem quero morrer. Tenho de cumprir minha missão!!” –

E começou a planejar uma fuga. Olhava ao redor para ver se haveria alguma possibilidade de escapar dali. Havia umas frestas na parede ou muro que cercava aquele lugar terrível, mas eram pequenas demais para se passar por elas.

A chamada continuava implacável e a solução parecia impossível... A cada número chamado, a “fila” ia andando e o lugar ia sendo ocupado por outro que ia entrando sem parar.

Quando faltavam 28 condenados para que o número de Takeshi fosse chamado, ele resolveu tentar a fuga pela brecha do muro. Só então se lembrou de que do outro lado daquele muro ficava uma rua cheia de perigos: assaltantes, viciados, prostitutas, traficantes e que ele correria muito perigo se fosse para lá.

Então começou a se sentir muito sujo e pensou: - “Preciso tomar um banho. Eu sempre tomei 2 ou 3 banhos por dia, adoro tomar banho e vou pegar minha toalha para tomar um banho! “ –

Levantou-se da cama, pegou a toalha que estava na cabeceira e ia procurar um lugar onde tomar o seu banho.

Então ouviu alguém dizendo:

- Segurem-no!.

- Não Sr. Takeshi, o Sr. Não pode se levantar! A enfermeira virá para lhe dar um banho na cama; o Sr está muito fraco...

Abriu os olhos. Estava voltado para a parede quase caindo da cama, segurando a ponta do lençol, e os enfermeiros tentavam segurá-lo na cama para não cair nem arrancar todo o equipamento hospitalar ao qual estivera ligado durante os 20 dias que passou em coma na UTI devido ao traumatismo craniano provocado pelo tombo naquela tarde de verão.

Perdeu 14 quilos e não podia manter-se em pé.

Após voltar par o quarto, submeteu-se a 3 dolorosas e complicadas cirurgias para reparação do ombro direito que se esbagaçou na queda e que lhe custaram tanto sofrimento e dor a ponto de ele pedir ao médico que lhe amputasse o braço, pois não suportava mais tanto sofrimento. Pedido não atendido, logicamente.

Hoje, 3 anos após o ocorrido, o Sr Takeshi me relatou essa “viagem” que fez enquanto esteve em coma.

Uma viagem estranha que fez com que aquele pequeno homem amarelo, que sentia pavor de morrer, hoje aceite a ideia da Morte sem nenhum problema...