Conto das terças-feiras – Cidadão fora de qualquer suspeita
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 16 de março de 2021
Há coisas que nunca devemos guardar, principalmente as que são impossíveis de serem preservadas, dada à sua condição de deteriorável em rapidíssimo tempo. É a famosa merda ou cocô, ou ainda, bosta, caca, dejeto, esterco, estrume, fezes, titica etc., produzida pelos animais irracionais e pelo homem. Algumas dessas palavras estão associadas a situações, por exemplo, sujeira, imundice, porcaria, lixo, lixeira, chiqueiro, esterqueira etc. Outras, ainda, a uma condição pessoal, como pobreza, miséria, penúria ruína, mendicância etc. Há palavras referentes ao comportamento pessoal: imprestável, inútil, traste, nulo, ineficaz, ineficiente.
O interessante de tudo isso é que somos fazedores de merda consciente, ao sabermos onde estamos nos metendo, sem nos darmos conta do que está acontecendo. O arrependimento vem sempre a cavalo, quando pensamentos nebulosos passam a rondar a nossa cabeça deixando-nos desconcertados: o que passou pela minha cabeça a agir dessa maneira? Eu devia estar louco!
Agoniado, Aurélio, homem correto, prudente, circunspecto, respeitoso, profissional da saúde, chegou a seu local de trabalho incomodado. Acostumado a se alimentar pessimamente, comendo sempre em pé, em locais não apropriados, nos pequenos intervalos de suas atividades profissionais, vez por outra o nosso personagem é acometido de dor de barriga, oriunda de infecções viróticas ou bacterianas. Ao final daquele cansativo dia de expediente, já de volta para casa, a famigerada dor de barriga começou a incomodá-lo, prenúncio de diarreia. Estava ao volante de seu carro novo, Renault Kwid, bancos em couro e demais novidades do ano, cheirando a novíssimo. Lembrou-se que sua residência ficava distante e não conseguiria chegar a tempo de descarregar o barro em seu confortável e perfumado sanitário. Preocupado, começou a desenhar uma estratégia quando percebeu o letreiro de uma grande farmácia.
Pensando o que fazer, entrou na farmácia e perguntou se ali teria um sanitário. Com a informação que ele estava em obras, o desespero subiu-lhe à cabeça e a dor de barriga aumentou. Olhou para um lado, para o outro, não achava lugar para realizar o seu despejo. Observou que a porta principal era composta de dois estágios, em um deles havia um totem com propaganda de remédios e, ao centro um dispenser de álcool em gel. Ele pensou, ali é um bom lugar.
No segundo seguinte passou a cronometrar os clientes que entravam e saíam. Àquela hora da noite, em três minutos ninguém entrara na farmácia, tempo suficiente que ele precisava para aquela ação intempestiva. Para despistar percorreu um dos corredores de gôndolas, dando a entender que estava procurando um remédio, algumas vezes balançava a cabeça, demonstrando não ser o remédio que precisava. Afrouxou o cinto, era iminente o desfecho do imprevisto que estava passando. Com passos largos encaminhou-se para o local planejado, abaixou as calças, acocorou-se, deitando ali a sua obra, uma perfeição! Retirou do bolso de sua calça um lenço branco e fez a higiene anal. Colocou o lenço de volta no bolso, pois nele estava bordado o seu nome e não havia lugar onde deixa-lo Aliviado saiu às pressas daquele espaço estreito e devasso, já que todas as laterais eram de vidro, caminhou disfarçadamente para a rua, permanecendo aí para se refazer do estado de excitação a que se submetera. Os atendentes, sem nada perceber, olharam desconfiados. Minutos depois as reclamações de clientes choviam na entrada da farmácia.
Refeito do nervosismo que acabara de passar, Aurélio dirigiu-se compassadamente, como se nada daquilo tivesse acontecido, para o seu carro, tomando a direção da casa de sua genitora. Precisava terminar o asseio, a higienização pessoal, mal e porcamente realizada na porta giratória da farmácia. No banheiro da casa de sua mãe, jogou o lenço ainda sujo de merda, em uma lixeirinha colocada para receber os pedaços de papel higiênico utilizados. Ao sair do banheiro sua mãe o convidou que ficasse para o jantar, sugestão aceita!
A ceia durou 40 minutos, pois estava com pressa de ir para casa, ver sua esposa e as crianças. Passara a noite anterior e o dia de plantão. Na saída a mãe o esperava, segurava uma pequena sacola de loja para entregá-lo:
— Meu filho, você deixou cair o seu lencinho no banheiro. Estava com um cheiro não muito bom, lavei-o com um sabonete perfumado, sequei-o no ferro de engomar e coloquei um pouco de perfume nele.
Com certo nojo o filho, um pouco irritado, pegou a sacolinha, colocou-a sobre o tapete do carro, do seu lado direito, beijou a testa da senhora e agradeceu o jantar. Mais na frente parou, abriu a janela do veículo e, com nojo jogou longe o que a mãe não precisaria ter devolvido.