O Outro Lado
Deitou-se cedo como de costume mesmo sabendo que já não seria preciso ser doentiamente pontual. Dormiu logo. Esquecia primeiro as mãos, depois os pés e quando seria para esquecer as pernas e as coxas já dormia o sono pesado dos justos, sono povoado de gente, de coisas do trabalho, de pesadelos às vezes. Aprendeu com um militar a forma de adormecer de imediato para aproveitar mais o descanso. Manuela fora em vida a fiel depositária das aventuras e casos do dia mas agora, ficava em silêncio a pensar neles se valesse a pena, ou nem pensava para ser mais fácil adormecer. Ocupava apenas a sua metade da cama como modo de não se sentir tão só. Quando acordou, olhou o relógio e principiava a recuperar o atraso quando se lembrou de que estava aposentado, que não precisaria sair logo do quente, que, finalmente, não tinha já que aturar o Senhor Mendonça nem a sostra da secretária, nem o aperto dos outros nos transportes públicos, nem as mil coisas inúteis que fazia para se defender de ditos no escritório. Entre os empregados era conhecido pelo velho. Diziam a palavra carregada de intenção embora ele fingisse não perceber. Um dia excluíram-no de um curso de actualização e outra vez o nome dele foi posto na lista dos funcionários a dispensar na reestruturação da empresa. A seguir o tempo voou e em menos de nada arrumou a sua secretária e, sem informar ninguém para evitar despedidas, saiu à hora do costume para não voltar. Custou muito o primeiro dia. Não sabia o que fazer, a casa parecia-lhe estranha, a empregada não deixara comida feita. Como combinado passaria ele a tratar das compras e da comida. Saiu tarde para o supermercado e trouxe o gatinho no bolso do casaco. Alguém o abandonara na carroçaria de uma carrinha estacionada junto ao Banco. Não tinha leite e voltou a sair para o comprar. A seguir perguntou que comida para gatos novos poderia levar e, mais tarde, adormeceu com o gato na cama.