Conto das terças-feiras – Realidades distintas
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 9 de março de 2021
Pano de fundo: duas garotas, ambas com sete anos de idade e mesmo nome – Alice. Diferentemente de “Alice no País das Maravilhas”, conto infantil escrito por Charles Ludwidge Dogson, sob o pseudônimo de Lewis Carroll, em 1865, cuja história relata que a menina foi levada para um lugar fantástico povoado por criaturas peculiares. Em nossa história, as duas garotas vivem em um país real que apresenta fantástica desigualdade social e dimensões continentais, cujas riquezas são incalculáveis, não justificando a pobreza reinante.
Uma delas, de agora em diante Alice 1, mora em uma favela, hoje, comunidade, rodeada e comandada pelo tráfico. Mãe desempregada, vivendo dos rendimentos de faxinas em apartamentos e casas da cidade, deixando a filha ao Deus dará. Sai antes do sol nascer e volta ao escurecer. Às vezes só deixa pão e água para a criança. Há outra filha, irmã de Alice 1 só por parte de mãe, uma garota de dezesseis anos, que toma conta da casa, um casebre. As duas, costumeiramente, recebem socorro da vizinhança, ali todos se ajudam mutuamente.
Alice 2 mora em apartamento, no décimo andar, vista privilegiada, estuda em uma boa escola e já sabe ler, diferentemente da Alice 1, que ainda não estuda e nem sabe se estudará algum dia. O que Alice 1 gosta de fazer todos os dias é ir até à praça do bairro, não muito distante de sua morada, para ver as meninas ricas brincarem com suas bicicletas, patins e bonecas. Fica ali até a irmã vir buscar, na hora do almoço, que almoço? Ela nem chega próxima às garotas ricas, que desconhecem essa condição, só sabem que sua morada é muito diferente da casa daquela menina pobre.
Todos os dias Alice 2 tenta se aproximar daquela garota que fica ali sentadinha, às vezes com alguns gravetos nas mãos, fazendo-os de bonecas. A dificuldade de aproximação é imposta pela babá sempre vigilante, não a deixando só um minuto que seja, recomendação dos pais! Em um dia de descuido da babá, Alice 2 se aproximou da outra Alice e travaram o primeiro diálogo:
— Qual é o seu nome, garota?
Sem levantar a cabecinha e encarar a sua interlocutora, respondeu: — Alice!
— Meu nome também é Alice, onde você mora?
— Moro na favela, disse ela sem constrangimento.
— É aqui perto? A resposta foi positiva, ela levantou o dedinho e apontou para o lado esquerdo, indicando a direção da favela.
— Eu moro ali, apontou a Alice 2 para o belo prédio à sua frente. A outra Alice nem olhou, sabia para onde ela apontava.
Fez-se silêncio, as duas não tinham nada mais a dizer. Porém, Alice 2 percebera os gravetos nas mãos de sua nova amiguinha. Aquilo a deixou curiosa e procurou saber o que a menina segurava.
— Essa é Maria e esse é José, meus dois amiguinhos. Eu brinco com eles todos os dias, aqui nesse lugar. Eles moram ali naquele buraco. Eles ficam lá, para ninguém levar. Só quem sabe disso é o homem que molha as plantas. Logo que chego aqui vou correndo acordar os meus amiguinhos.
Comovida com aquela história, Alice 2 foi ao encontro de seus pertences, que estavam sob os cuidados da sua babá, e, sem esta perceber, pegou duas bonecas, na verdade uma boneca e um boneco e voltou correndo para junto da Alice:
— Tome, é para você. Só não deixe naquele buraco, tem gente má que pode levar embora. Leve para a sua casa.
Levantando as mãozinhas, e de cabeça baixa, a menina pegou aquilo que lhe estava sendo ofertado, apertou no peito e chorou. Só pediu uma coisa, que ela pudesse levar também os gravetos, isto é, Maria e José, para casa. Não queria sentir saudade dos dois.
— Agora somos amigas, muito amigas, disse Alice 2. Você vai tomar conta dos meus filhos e eu quero saber de tudo sobre eles. Se estão comportados, obedecendo a você, dormindo cedo. Minha mãe gosta que eu durma cedo.
— Já é tarde, temos que ir para casa, almoçar. Amanhã vejo você novamente.
A Alice 1 levantou-se, deu um abraço na Alice 2 e ambas choraram de emoção. Das extremidades da praça as duas se acenaram, jogaram beijinhos e saíram de cena.