Uma ocorrência de carnaval
Sábado de carnaval. Um mar de pessoas inundava as ruas do centro de São Paulo, mostrando ao mundo que ainda se lembravam de como se aglomerar.
De um lado, milhares de foliões espremidos seguiam um trio elétrico que descia a São João ao encontro de outra marcha carnavalesca que vinha pela Ipiranga. Dançavam, riam, se pegavam e bebiam e se apertavam, tateavam e espremiam buscando espaço por onde andar. E como não conseguissem tocar o chão, eram empurradas pela massa e carregadas pela própria força da multidão.
Era um espetáculo grande e maravilhoso, uma catarse coletiva. Uma horda magnífica embriagada de álcool e de música, seguindo em transe aquela procissão profana, se movendo como um verdadeiro corpo sólido e uno. Era efetivamente era um bloco, um bloco de carnaval.
Os únicos pontos fixos naquela enxurrada eram algumas viaturas e postos policiais e os disputados banheiros químicos ou becos apertados com seu entra e sai intenso, despejando mais pessoas na multidão. De longe, sequer era possível ver o asfalto e do alto de alguns prédios, policiais vigiavam aquele rio de gente em um esforço inútil de patrulhamento com que simulavam a ordem no caos. Tudo era permitido. Batedores de carteira, ambulantes, beijos tórridos, paixões furtivas, discussões de casais, amores perdidos, desencontros e encontros que prometiam e simulavam a eternidade e nunca sobrevivem a uma quarta de cinzas.
Também ele descia a via. De longe e do alto, no entanto, observava silencioso a multidão com sua visão ágil e aguçada, atento a cada mínimo movimento, tumulto ou ocorrência deslocando-se com rapidez para garantir a tranquilidade da festa. Como herói silencioso e invisível, trabalhava discreta e anonimamente. Servia sem arma, sem farda, medalhas ou condecorações. Era um patrulheiro incansável e vigilante, devotado e comprometido com a segurança de todos.
Lá de cima talvez visse mais do que desejasse ou conviesse ver, porém, aprendeu a manter a discrição sobre tudo o que observava. Talvez até julgaria a farra lá embaixo, mas, para sorte de todos, não foi presentado com a faculdade do juízo. Assim, apenas cumpria, fiel e devotamente, a função para a qual fora treinado.
Era um drone. Não tinha nome, apenas número de série.
Lá embaixo, os homens e mulheres sequer notavam todo aquele aparato de patrulha e vigilância, e mesmo os que sentiam o olhar do patrulheiro ou de algum policial de binóculos, retribuíam com beijos, agitos de mão ou mesmo algum gesto obsceno, no caso dos foliões mais encorajados. Contudo, até mesmo uma criatura programada para vigiar já conhecia de outros carnavais aquele código temporário de conduta e aprendeu, afinal, a fazer vistas grossas para algumas ocorrências ou ofensas sem valor.
Já era quase meio-dia. O sol escaldante fazia subir o odor de suor e bebida emanado da multidão e embora nem o mau cheio fosse capaz de atrapalhar ou distrair o jovem patrulheiro em serviço, a certo momento, talvez por efeito dos fortes raios solares e das ondas sonoras, sentiu-se tremer e balançar como se também ele fosse empurrado por aquela massa de calor e de som. Aturdido pela música, pelos gritos e pelo sol, voou rápido para junto de uma árvore próxima e de lá assistiu aos bombeiros que ligavam as mangueiras dos caminhões e providenciavam uma chuva que projetavam sobre a turba para aplacar a sede e o calor. E o patrulheiro pôde sentir então pela primeira vez a sensação do toque e do frescor da água refrescando-lhe os circuitos.
Recobrado o controle depois da breve turbulência saiu do seu esconderijo ainda um pouco assustado e lento, mas cedendo aos apelos do dever e aos chamados do rádio. Retoma sua varredura panorâmica e continua sua marcha solitária junto com a multidão. Fato era que se sentia entediado, estava exausto da farsa e da farra, talvez pela revolta natural dos que trabalham enquanto os outros se divertem, talvez porque invejasse os foliões, talvez porque todos uma hora se cansam do tumulto, da festa e da aglomeração. Fiel aos seus deveres e propósitos, que nem ele, no entanto, sabia quem lhe pusera, acompanhava a evolução do cortejo que se aproximava da famosa esquina da Ipiranga onde findaria em uma grande explosão de carnaval.
Era o momento mais tenso do dia e sua visão não poderia falhar. Os blocos se aproximam e logo se encontrarão no emblemático cruzamento da capital. A manobra não é fácil e exige muita habilidade e coordenação para mover não só os trios, mas amortecer a força do choque da multidão maciça que os segue. Dois corpos em rota de encontro, ou de colisão.
O patrulheiro baixa a altitude, reduz a velocidade e adianta-se para a esquina. E ao cruzá-la, eis que alguma acontece no seu coração. Sentiu apenas uma batida forte e perdeu o controle de voo. O impacto quase o fez bater em uma enorme caixa de som, mas, por sorte, suas hélices estavam intactas e conseguiu desviar do obstáculo. Recuperado da batida, levemente tonto pelo choque, volta-se para o lado e vê o drone que o havia batido. Suspensos ambos no ar entreolham-se sem saber o que fazer ou como agir. Era como se toda e música e todo o barulho, de repente, tivessem sumido. Entre eles o silêncio era quebrado apenas pelo ruído suave de suas asinhas.
Depois de alguns minutos, o patrulheiro dirige-se até o drone para vistoriá-lo, ver se estava bem. Não fora programado para aquelas ocorrências e abordagens, mas foi mesmo assim, impelido por uma força ou impressão de que era coisa certa, ou inevitável de se fazer. Voa devagar, hesitante, quase tímido e ao se aproximar do drone ferido toca-lhe uma das hélices que imediatamente volta a girar. O contato produz entre eles um pequeno choque que é sentido por todos os circuitos elétricos ao redor.
Aquela simples e pequena ocorrência, no entanto, causou um forte ruído nas caixas de som dos trios que despertou a massa de seu torpor. Acordados por aquele grito agudo, os foliões imediatamente gritaram, outros xingaram e se revoltaram com a interrupção da festa, mas houve quem identificasse a origem da interferência e dentre eles, inclusive, quem atirasse latinhas e garrafas para conter a devassidão. Aquilo era um escândalo, um absurdo. Era um amor genuíno.
O som logo volta aos trios enquanto os drones seguem juntos para a República. Pelo rádio, o comandante anuncia: “temos uma grave ocorrência: dois robôs desertores”. Ora, resgatar fujões de serviço em dias de carnaval era algo ao qual a companhia já havia se acostumado e tolerado, porém, desertar de amor já era demais para qualquer corporação. Era um caso de polícia. Um soldado raso aplicado e idiota decide por obra própria dar um disparo para abater os meliantes. O tiro passa longe, mas, do outro lado da rua, empolgado pela ideia imbecil do subordinado, um sargento ordena uma salva de tiros. Era preciso restabelecer a ordem e a autoridade, mesmo no meio da folia.
O eco dos disparos ressoa por alguns segundos entre os prédios, mas dessa vez a multidão não se apercebe, envolta na música que voltara a tocar. A multidão segue indiferente àquele encontro quase silencioso, mas, um jovem casal percebendo o barulho estranho sorriu para os dois drones em sua rota de fuga. Era um crime de carnaval
Aquela singular ocorrência policial, no entanto, não saiu nas páginas de jornal nem nos noticiários. Nas coberturas da televisão nada se comentou ou se mostrou, apenas as entrevistas habituais, com as velhas fantasias de sempre e beijos protocolares, afinal, o amor tem seus limites e censuras, até no carnaval.
Algumas semanas depois, dois celulares são presos trocando nudes. Questionada, Siri não quis gravar entrevista.