Um Conto de Natal : 5.000+3.000+1.000

22.12.2018

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Acabara de sair da estação do metrô e caminhava em uma larga e espaçosa calçada de avenida importante da cidade, indo para um shopping perto. Época de Natal, com muitas pessoas andando em busca dos seus presentes também, quando vejo a minha frente, sentada na calçada junto à parede do prédio, uma mulher de meia idade, moradora de rua, com um caderno e várias canetas coloridas, escrevendo sem parar. Passo por ela e me questiono: o que será que tanto escreve? Volto curioso. Queria saber da sua escrita.

-O que você está escrevendo?

Ela levanta seus olhos negros, cabelos grisalhos já, morena de pele, e me diz:

-Cinco mil, mais três mil, mais mil vezes que me roubaram! Cinco mil, mais três mil, mais mil vezes que me roubaram! Era completamente desconexa a sua fala e repetia várias vezes a mesma frase.

-Posso ver?

Mostra-me o caderno. Vejo páginas e páginas coloridas em azul, vermelho, verde com números redondos, regulares e constantes, os algarismos bem feitos, com capricho, a letra bem desenhada e grande, limpa. Estava todo ele praticamente preenchido linha a linha, em sequência, parecendo mais um código. Tivera alguma instrução e formação escolar, certamente. E tinha outra aptidão: escrevia da direita para a esquerda, perfeitamente. Era destra.

-Quem lhe deu o caderno e as canetas?

-A minha patroa! Todo dia, todo dia, tooodo dia ela me deixa aqui e me dá caderno, as canetas, todo dia, tooodo dia - repetia indefinidamente, como em transe.

-Onde você mora?

-Moro aqui na rua, aqui onde eu tô. Tem a turma lá da pracinha, mas não gosto deles não. "Robam" a gente toda a vez; já me "robaram" cinco mil, mais três mil, mais mil vezes. E minha patroa me traz todo, toodo dia os cadernos e as canetas, toodos os dia.

-Ah, sei! Eu ia te trazer mais cadernos e canetas.

-O senhor não tem um dinheiro pra comer? Caderno e caneta minha patroa me dá todo dia!

-Estou sem dinheiro comigo agora, mas vou aqui ao shopping e depois te dou, tá certo?

Ela me olha desconfiada e conformada de que eu seria mais um dos que não lhe ajudaria e continua sua escrita colorida e codificada, preenchendo cada linha da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita, uma após a outra.

Entro no prédio cheio de lojas, burburinhos de falas, sons, risos e pessoas em busca de seus presentes, como eu.

Pensei na mulher, se sua condição fora causada pelas drogas, talvez sim - o grupo da praça era todo drogado de fato. Talvez não, poderia ser algum tipo de má formação genética ou estar em processo de demência. Enfim, era o que era: aquela pessoa sem ninguém, jogada como tantas outras, em sobrevivência bruta e desumana. E quando as encontramos, fugimos com repugnância, asco até e as tratamos como animais, ou pior, pois não damos nenhuma atenção ou consideração: não existem para nós.

Fiz as compras durante quase toda a manhã e voltando pelo mesmo caminho que viera, vejo-a no mesmo lugar, encolhida como um feto, deitada na calçada, de costas para a rua, com seus sacos e sacolas plásticas ao seu lado - não mais do que três - contendo seus pertences e lembrei-me de minha promessa.

Voltei ao shopping, retirei dinheiro do caixa eletrônico e como estava com fome, entrei em uma lanchonete, comi um lanche rápido e reservei o troco para ela (depois me envergonhei da minha mesquinhes pelo valor que lhe dei) e voltei para onde ela estava.

Chego ao seu lado e vejo que dorme um sono profundo, denso. Observo-a e percebo que mesmo sendo moradora de rua, tem certo asseio e cuidado - suas roupas não são tão puídas, seus cabelos estão até que arrumados com duas "maria chiquinhas" de cada lado da cabeça, mas os pés estão descalços, grossos, sofridos, como sua pele e mãos. Acordei-a vagarosamente balançando o seu corpo devagar, como um ninar. Volta-se para mim, estava deitada de lado com o rosto para a parede, abre lentamente seus olhos, não entendendo bem o que acontecia. Olha-me e um leve sorriso surge em seu rosto:

-Vim trazer o dinheiro para você comer, como prometi - lhe dei trinta e oito reais. Deveria ter dado cinquenta, cem reais, não só esse valor, mesquinho. Recriminei-me!

-Obrigado, que Deus lhe ajude tanto o que está me ajudando - disse, sorrindo agradecida com seu olhar não tão alegre e de rosto triste!

Voltei ao meu caminho para a casa, com meus presentes de custo significativo nas sacolas, remoendo o porquê de não ter lhe dado valor maior, por esse fato. Mas depois, no vagão do trem, com essa questão na cabeça, me senti consolado e confortado, pois não importava o valor que tivesse dado a ela, e sim, a atenção e consideração que lhe dei naquele momento: foi o meu maior presente, pois a fiz sentir-se visível, como uma pessoa que existe!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 28/02/2021
Reeditado em 28/02/2021
Código do texto: T7195044
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