Conto das terças-feiras – Forçando a barra
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, 23 de fevereiro de 2021
Henry Charles foi sempre um devorador de livros, desde os seis anos. O incentivo partiu de seu pai, alemão de nascimento, mas brasileiro de coração, fissurado também nos livros. O nome do filho foi dado em homenagem ao escritor Henry Charles Bukowski Jr. O pai não admitia que o filho fosse chamado apenas de Henry ou Charles, achava que agindo assim as pessoas estariam menosprezando o nome do grande escritor e poeta alemão, que viveu e morreu nos Estados Unidos (1929 – 1994).
Os primeiros livros dados para o menino foram de escritores brasileiros, do gênero infantil, como a idade pedia. Logo desprezou esse gênero, tendo o seu pai partido para os contos curtos, com histórias singelas, ingênuas. Inicialmente ele os lia ao final, sempre criticando os desfechos dados pelos autores. Pedia ao pai histórias mais vibrantes, mais contundentes. Preocupado, o pai tornou-se crítico das leituras de Henry Charles, não que ele tenha se tornado censor, queria apenas agradar o já adolescente, com medo de que ele passasse a odiar os livros. A tentativa era para fazer do amado filho um escritor de renome internacional, como o seu autor preferido fora, Henry Charles Bukowski Jr.
Sem sucesso, a solução pensada foi trazer um psicólogo e escritor para junto do garoto, na expectativa de descobrir o motivo ou motivos das consecutivas rejeições aos livros adquiridos. No quarto do garoto já não cabia mais livros, estantes cheias, debaixo da cama livros lidos apenas pela metade. O interessante era que o filho sempre estava a pedir mais e mais livros. Já não importava o gênero, contanto que fossem líricos, épicos ou dramáticos.
No primeiro contato que teve com o garoto, o psicólogo percebeu naquele leitor que lia muito, faltava prazer e paixão pela leitura. Só queria agradar o pai, o velho alemão, que, embora um disciplinador impetuoso, procurava sempre agradar o filho. Não sabia que estava tentando fazer do filho aquilo que ele não conseguira ser.
Aprofundando suas observações, o psicólogo percebeu que todos os livros já lidos pelo garoto continham palavras e desenhos, referenciando a fatos e ações descritas nessas obras. Como negando todo o empenho do pai em fazê-lo grande escritor, demonstrava não entender que as palavras ali expostas nada significavam para ele, não representava o que gostaria de encontrar em um livro.
Por outro lado, as figuras eram bastante significativas, falavam do desacordo entre ele e o autor. Expressavam os diálogos que gostaria de ler, dos finais de cada obra lida por completo. Na maioria das vezes as figuras eram vivas, brilhantes e profundas. Mesmo sem chegar ao final da história, desenhava como essa deveria ter sido escrita. Impressionado, o psicólogo arriscou uma questão:
— Henry Charles, você realmente gosta de ler livros?
Acabrunhado, o adolescente olhou para um lado e para o outro como verificando se o pai estava presente e respondeu:
— Na verdade, não! Só estou tentando agradar ao meu pai. Eu sei que tenho condições de escrever qualquer coisa, mas meu desejo é aprender a desenhar, a pintar, realizar-me como pintor, ter um ateliê próprio, onde eu pudesse expressar minhas angústias, meus desejos e minhas alegrias, - concluiu o garoto.
Informado e conformado, o pai aceitou as ponderações do psicólogo, colocou o garoto em uma das melhores escolas de desenho e pintura de sua cidade, deixando-o livre para voar, fazer de sua vida momentos de efervescente criação.
Duas semanas depois o psicólogo teve uma agradável surpresa, chegaram a sua casa todos os livros que Henry Charles tentara ler e não conseguira. Entre esses, um livro autoral, escrito todo à mão e encadernado artesanalmente. Na sua última página, a seguinte frase:
Obrigado grande mestre, por ter me direcionado ao ponto certo de minha vida!
Henry Charles
1944