Vivências de Amir

Moro na mesma rua há 15 anos.

Desde que cheguei, me guio através de uma parede grande, com pequenos ladrilhos. Vou seguindo até tocar um pano de algodão, que esconde um tampão feito de papelão, sustentado por umas caixas grandes feitas de madeira. Em frente, uma senhora, cigana, que se projeta como uma guardiã das balas, pirulitos e doces. Ela se prostra em frente a eles e dispara um bom dia, seco, mas profundo e carinhoso. Lá ela fica, até eu me recolher por entre os papelões.

Imagino, pela forma de falar, uma segurança desbotada pelo tempo, mas sua simpatia, calma e mistério escondendo suas dores, são envolventes. Ela me alimenta com suas histórias, que entregam seu humor diário. Não sei se são reais, mas ela nunca repete a mesma história. Me pergunto quem viveu tanto tempo para tantas narrativas.

O sol das 8h aquece o asfalto e levanta um cheiro que só não é mais insuportável que o calor. Minha vizinha já está me esperando com o cheiro de tutti-frutti que salva minha sanidade, me recorda a infância com o tio da pipoca e a tia da Juquinha em frente a escola. Meus professores sempre mudavam, mas ele e ela sempre estavam lá, ano após ano. Essa presença trás a segurança de saber o que me espera no caminho e as conversas aliviam as dores de me sentir sozinho.

Assim que o calor baixa, eu me debruço pelas paredes andando por uns 10 minutos, até voltar ao meu canto. Sempre encontro uma quentinha quando chego. É a vantagem de estar no mesmo espaço a tanto tempo.

Acordo no dia seguinte e sigo o mesmo caminho. Parece demorar um pouco mais a caminhada dessa vez, mas continuo seguindo, apalpando o ladrilho, até não sentí-lo mais. Deve ter tido algum engano, vou voltando e a cada passo me sinto perdido. Tento me apegar a algum detalhe que me dê alguma resposta de onde pode estar a cigana. Mas, só consigo ouvir o som de uma britadeira distante abafada pelos carros passando. Ando mais um pouco e chego novamente ao final dos ladrilhos.

Onde está meu papelão? Minha casa não pode ter sumido de uma hora para outra.

Sento na rua e começo a chorar, quem tiraria tudo de um homem que já não tem nada?

Busco a voz de alguém para entender me descrever a situação, quando vou na direção, sou surpreendido com buzinas e xingamentos que não vale a pena pronunciar. Minhas mãos, finalmente, seguram algo diferente do ar e assim que a toco me perguntam: “Está tudo bem?”.

Eu tento explicar a situação, a cigana não está mais lá. Meu papelão sumiu. Sei que vão me ouvir e me acolher. Até tentam, mas não reconheço aquela voz penosa, cercada de culpa pela minha condição.

Esbravejo, grito, choro. Até a chegada da van que me leva sem a possibilidade de nenhuma objeção. A van que julga, joga, cobra e no final te obriga a agradecer por tudo que proporcionou. Cortam meu cabelo e minha barba por que é mais bonito e apresentável ao mundo que quero me esconder. Tiram meu cheiro que afasta os que nunca evão estar do meu lado. Falam da “cidadania” que só me reconhece por contradição.

Não tem revolta que resista a um remédio.

Durmo a noite, acordo com alguém gritando e me dizendo que está na hora de comer. Volto para a rua, sem paredes, sem ladrilhos, sem papelão, tutti-frutti, mas devidamente em silêncio, buscando novas histórias para preencher aquelas que não posso contar.