Gritos e berros

Era cedo da noite e já eram poucos e rasos os raios solares que ainda mantinham o sol ao céu. Um tom tímido de vermelho pálido tomara conta, dominando por completo o amarelo sádico que, posteriormente, engolia toda a cidade.

É nesse horário que, em meio ao caos miseravelmente organizado do homem-urbano, o movimento à cidade atinge seu pico. Ruídos estrondosos de motores, revolucionando a sabe se lá a qual velocidade, por todos os lados. Buzinas tocadas de maneira não simultânea e tão pouco ritmada, acabavam vir a criar seu próprio ritmo de semblante irritante e ensurdecedor combinando assim perfeitamente com a mescla dissonante horrenda produzida por diferentes buzinas, de diferentes carros que, cada qual, com seus toms e timbres igualmente dissonantes e horrendos.

Mesmo com todo esse zumbido constante ainda era possível ouvir algo que se sobressaia. Em um pequeno complexo de apartamentos, podia-se ouvir um grito, e então outro projetado com grande clareza. E então, dois gritos. Cada um com um timbre de voz. Havia de ser uma briga.

Acocorado e com seus ouvidos a porta, Jaime, escutava tudo atentamente. Tinha certeza de que, agora, murmuravam algo, mas não pode compreender bulhufas. Jaime morava a vários anos ali, no apartamento cinco, e ficara surpreso com os novos vizinhos. Desde que haviam se mudado, não houve dia e noite que não fosse aos berros.

Mal sabia quantos moravam ali, acreditava que há de haver ao menos dois, vide as brigas se tratarem de uma grande competição de quem hei de gritar mais alto. Costumava dar empate, pensava. Jaime havia, entretanto, visto apenas um até o momento. Ambos abriam as suas portas às 05:55 com a mesma precisão, numa bela sincronia coincidente de suas rotinas. Apesar de abrirem ao mesmo tempo, seus semblantes eram extremamente diferentes. Jaime sempre possuía um ar de ânimo, deixava um sorriso estampado no rosto havia muito e até hoje não fazia ideia de como o retirar. Logo acostumou-se. Mas o vizinho, por outro lado, acordava sempre teso, preocupado, com os olhos presos ao chão e, vez ou outra, ao seu relógio de pulso.

"Roberto! Olhe a merda que tu fez, te mato!" — o grito ecoou, chacoalhando os tímpanos de Jaime. Tomou consciência do rumo que as ameaças estavam tomando. Não eram apenas simples xingamentos. Há de tomar uma atitude.

Sim. São dois. — pensou — Há de ser. No dia seguinte, 05:55, Jaime abriu sua porta e, como esperado, assim o fez o Vizinho. Decidiu quebrar suas tradições restritas e deu bom dia ao vizinho. E, ele, ainda com os olhos grudados ao relógio, aparentou não ter ouvido.

—Bom dia. — disse Vizinho de repente, e então pôs seus olhos ao chão, como se precisasse calcular precisamente cada passo que daria e então seguiu seu caminho.

Sabia! Exclamou Jaime, agora só, em frente a sua porta. Pudera reconhecer a voz. Era Vizinho quem gritava com Roberto. Precisava ver Roberto. Saber o por que das brigas, ou até mesmo se estava bem. Precisava ajudar.

A semana seguinte foi, de todas as formas, estranha. A sincronia matinal fora quebrada, Vizinho não mais saía de seu apartamento as 05:55 em ponto, na verdade, a porta não mais se abriu. E as brigas haviam aparentemente cessado. Jaime colava o ouvido a porta, quando acreditava ser conveniente, mas não ouvia palavra.

Chegou a acreditar que haviam se mudado. Até que então, no começo da noite seguinte, ouviu os gritos retornarem. Aumentavam gradualmente o volume de suas vozes, até ficar com tom estridente, parecido com chaleira à ferver.

"Toda vez me faz isso, parecia ter mudado mas agora volta com isso! Te mato, Roberto!"

Jaime ouviu alguns gritos, mas estes não foram como os demais, foi de desespero, agudo como agulha, aparentava perfurar sua alma deixando um grande vão em si. Foi o cúmulo. Chamou a polícia.

Os gritos seguiram, já não se podia saber quem gritava com quem. Jaime tentou abrir a porta para apaziguar a confusão, mas estava trancada.

No cabo de dois ou três minutos, a polícia chegou. Abordaram Jaime, que estava tremendo e encharcado por culpa, por sua incapacidade diante a situação. Repetindo as palavras várias vezes, com bastante esforço, conseguiu explicar a situação. Os policiais chegaram a pensar em pedir em qual dos apartamentos acontecia o fuzuê, mas era evidente.

Com duas trombadas a porta, o alarme adentro do apartamento cessou e logo a porta de abriu. Assustado, um gato saiu correndo logo assim que a porta foi aberta. Fazendo grande barulho com seu colar de sino. E vindo aos berros de seu quarto, Vizinho gritou:

—Roberto! Não deixem ele fugir, não é castrado! — seu olho era de um orvalho exagerado.

Os policiais, sem entender, questionaram do que se tratava a situação. Jaime que estava ainda no corredor, tomou liberdade e se pôs à porta do apartamento.

Tremendo e aos prantos, Vizinho explicou que, na verdade, Roberto não é homem. Não no sentido másculo da coisa, mas no sentido de ser ou não ser algo. Roberto não é homem. É gato.

Após entenderem a história, os policiais ameaçaram cair de pau em Jaime se outro alarme falso dessa magnitude fosse parar aos seus ouvidos novamente. E sem se desculpar pela porta, que haviam estraçalhado, deram as costas e se foram.

Jaime, ainda sem acreditar na situação, questionou Vizinho.

—Mas como Roberto é gato se pude ouvir com clareza mais de uma voz saindo de seu apartamento?

—Minha voz é meio falha, instável. Vou em fonoaudióloga a anos mas de pouco adianta.

—Mas depois ouvi gritos desesperados, agudos e penetrantes.

—Sim, era meu gato. Ele voltou a usar meu sofá como caixa de areia. Bicho nunca aprende, e eu logo perco paciência. Mas saiba que grito apenas por gritar. Gosto de Roberto, e agora temo que ele não volte, assustaram muito ele quando bateram a porta...

Enquanto conversavam, Roberto adentrou o apartamento, de postura baixa devido ao medo, correu para o quarto. Vizinho ficou claramente contente com a volta de Roberto. Jaime corou e então, pediu licença e deixou o apartamento.

Pode ouvir os gritos voltarem.