O circo invisível de Peppe

O circo invisível de Peppe

Era final de tarde com o sol deitando no horizonte, e nenhuma brisa para movimentar a folhagem do cajueiro. A modorra fazia tudo levitar naqueles quase 40 graus.

As casas já tinham fechado as venezianas para evitar entrada de pernilongos. Havia um incômodo silêncio a contribuir com a prostração dos moradores de Buritizinho.

Uma música começou a ser ouvida ao longe. Era o circo chegando, tinha certeza disso, lera um aviso na semana passada no mercado “O circo vai chegar”. O velho pôs-se atento, embora não movesse músculo para ir à janela.

Lembrou-se de quando era criança na pequena cidade do nordeste onde nasceu. Seus pais o chamaram aos berros para ver o circo passar diante da casa.

— Respeitável público, o circo chegou! Venham todos! A trupe está passando na sua rua, venham ver!

A lembrança o fez sorrir. Ainda se lembrava dos pais e de alguns acontecidos de sua vida.

A música já se espalhava por todo canto do vilarejo e só era interrompida pela voz rouca do palhaço Levado da Breca, parecia que tinha voltado no tempo:

— Respeitável público, o circo chegou! Venha, venha! Venha ver o palhaço atrapalhado, o leão que engole pessoas, a trapezista que cai do trapézio. Venha ver!

Giuseppe levantou devagar da rede. Embora não demonstrasse, estava ansioso, não queria perder o desfile fantástico. As rodas dos carroções rangiam no paralelepípedo e gingavam de lado para outro. Uma névoa branca foi lançada no ar pela trapezista loira que ficava no alto de um poste metálico, e um perfume doce tomou conta de todos.

Inebriado Giuseppe sorria e balançava os braços acenando para a trupe. Num zás foi à cozinha chamar a irmã surda:

— Venha ver, Carminha. O circo está passando aqui na frente de nossa casa. Corra!

E a velha senhora seguiu o irmão que corria em direção à janela.

Ela espiou para cá e para lá encantada com a possibilidade de ver a trupe do circo.

— Já passaram, Peppe? Por que demorou a me chamar?

O velho a sondou com olhar risonho.

— Já passaram os trapezistas, os animais nas jaulas, as bailarinas, agora só ficaram os palhaços e a banda. Mas, tá tão bonito, não tá?

Ela riu dele. Ele para ela. Ela voltou para os afazeres, e ele permaneceu ali acenando avidamente.

Naquela noite Peppe sonhou com um espetáculo circense, um mágico que transformava coisas em borboletas, e uma dançarina invisível, acordou e ficou a lembrar de sua criancice, mal conseguiu pegar no sono outra vez.

Pela manhã o ancião foi ao barbeiro, tinha muito assunto sobre o acontecido de ontem. Nunca naquela cidade se instalara um circo.

— Valentim, vim cortar a barba, toda ela, raspar tudo. – Disse com ar soberbo que aguçou o profissional.

— Mas o que deu em você, homem? Sabe que faz mais de dez anos que você só apara essa barba? É o calor? – Perguntou enquanto ajeitava Peppe na cadeira.

— Não. Ontem vi a mulher barbada e não gostei da aparência. A minha barba está maior que a dela. Vou limpar isso.

— Faz bem, vai parecer mais moço, você vai ver. A Carminha que tanto reclama de sua barbicha vai ficar satisfeita desta vez. Sempre que ela me encontra diz que eu tenho que rapar sua barba - Ambos riram.

Giuseppe pensava no circo enquanto uma toalha úmida e quente abraçou seu rosto inteiro. O mundo sob a toalha branca o levou para a infância. Uma vez os primos estavam todos juntos e fizeram uma cabana no quintal com a lona branca do caminhão do tio Frederico. Com ajuda do tio fixaram na goiabeira e no abacateiro. As abas caiam pelas laterais fechando para formar um grande salão interno. No chão alguns cobertores e colchões para amortecer quedas resultantes da brincadeira de circo. As mães deixaram que dormissem aquela noite na barraca. Lembrou que uma de suas primas disse ser uma fada e fazendo uns movimentos exibicionistas lançava um talco perfumado no ar. Todos ficaram asfixiados e tiveram que sair da cabana para respirar. Era uma boa recordação. Aquela moça no alto do poste na carreata do circo parecia uma fada.

— Valentim, você já sabe quando vai começar a função no circo? – Perguntou e moveu um canto da toalha para ter certeza de que o homem o ouvira.

— Que circo? Tem circo aqui perto?

— Não soube que a trupe chegou ontem à nossa cidade? Não passaram no seu bairro? Eles passaram bem na minha janela, é um circo bem grande, eu contei 4 caminhões, e alguns carroções. – Valentim o interrompeu.

— Ah, ontem não vi, não. Eu estive fora o dia todo, fui visitar meu compadre Antonio lá em Granada. Lembra-se dele, Peppe?

— Se lembro. O cara é mais teimoso que uma porta. Ele é muito engraçado. Gente boa. Nunca mais ele veio para cá?

— É. Tá adoentado, coitado. Não anda mais, teve um derrame.

— Coitado do Tonho.

— Mas, onde será que vão instalar o tal circo, você sabe, Peppe?

— Não sei. Penso que vai ser naquele campo de futebol de várzea. Anda tão abandonado aquilo, pelo menos alguém vai carpir e cuidar do lugar.

Nesse instante entrou o dono da farmácia maldizendo o calor. Valentim o mandou sentar e ofereceu-lhe água fresca:

— Francisco, viu ontem a trupe do circo passando pela cidade? Estamos achando que vão se instalar no campo. O que você acha?

O jovem Francisco olhou curioso para o barbeiro sem entender do que falava:

— Circo, que circo?

E Peppe tomou a palavra:

— Chegaram ontem anunciando que tinham um leão que comia pessoas, uma trapezista que caia do trapézio, etc. Uma moça no alto de um poste jogava alguma coisa cheirosa em cima da gente. Passaram na minha janela, eu moro na frente da escola.

— Só podem armar a lona no campo, aqui não tem outro lugar que caiba uma trupe com 4 caminhões e alguns carroções. O que acha? – Quis saber o barbeiro.

— Realmente, não há outro espaço para se instalarem. A não ser na beira da lagoa, mas lá tem muito pernilongo. Passei hoje cedo na beira da lagoa e não vi nenhum movimento por lá. – Respondeu o farmacêutico.

— Então vão mesmo ficar no campinho. – Confirmou Peppe.

Barba feita, aspecto jovial, Giuseppe entrou em casa feliz. Carminha, sua irmã sorriu quando o viu sem a barba:

— Agora sim! Parecia um bicho com aqueles pelos na cara. – Disse e riu para ele.

— Carmem, o circo vai ser montado no campo de futebol. Na beira da lagoa tem muito pernilongo, e o Francisco da farmácia disse que lá na lagoa não há nenhum movimento do circo.

— Circo aqui em Buritizinho? Quando começa?

— Não sei. O Valentim também não tem ideia. Mas em trinta dias já deve estar funcionando. Você sempre gostou de circo, mana, vamos matar nossa saudade. Lembrei até daquela noite que dormimos todos na cabana de lona do tio Fred.

— Ave! A gente tinha uns 9 ou 10. O tio Fred que amarrou as cordas nas árvores.

Peppe se acomodou na rede instalada no quintal dos fundos da casa, sob a paineira centenária. Ligou o rádio, queria notícias do circo, mas não obteve nenhuma. Adormeceu entumecido pelo calor escaldante. Acordou com a sineta de Carminha avisando que o almoço estava servido.

À mesa reinou um silêncio explicável, pensavam nas brincadeiras que tiveram quando criança. Pouco depois, à janela surge o Valentim:

— Opa, desculpem se ainda estão almoçando. Carminha, gostou de ver de novo a cara do seu irmão?

— Nem me lembrava mais como era. – Resmungou sorrindo.

— Ô Peppe passa lá mais tarde pra gente se organizar por causa do circo.

— Passo lá, depois do sol. – e acenou para o amigo que já saia de cena.

— O Valentim vai descobrir logo quando começa a função, você vai ver! – Disse a mulher sem levantar o rosto.

Peppe voltou para a rede depois de ter almoçado. Na rede, pensava que as poucas crianças de Buritizinho nunca viram um circo. Ele não. Ele era mais feliz porque foi ao circo com os pais quando tinha 7 anos. Jamais pode esquecer daquele mágico atrapalhado. Ele e os primos foram um outro dia com o tio Fred, e o tal mágico deixou cair uma varinha da manga da blusa. O tio Fred tentou devolver, mas o mágico disse que poderia ficar com ela.

E Peppe sorriu por se lembrar: A varinha!

Já estava escuro quando a irmã o encontrou ainda na rede, cabeça tombada para o lado, olhos fechados, e um terno sorriso nos lábios. Estava morto nosso Peppe.