UM ESTRANHO ENCONTRO

Um estranho encontro

Marilia tem quase setenta e acha que os defeitos da velhice começaram a afetá-la. Ela é ativa, gosta de viajar, fazer compras, tomar café com as amigas, jogar carteado. Mas os óculos que antes eram apenas para embelezar nos dias de sol, agora têm muitos graus. Os joelhos reclamam quando ela tenta fazer o que o médico recomenda: caminhada. Então ela desiste, e engorda. Daí se entrega para as drenagens linfáticas que melhoram o astral dela, mas não o corpo.

A audição minguou e ela vive pedindo para repetirem: Ahn?

O pior defeito é a memória que não colabora, e alguns trechos da vida vão se apagando.

Apesar de tudo Marilia segue como se nada de errado houvesse.

Outro dia ao sair de uma loja de roupas femininas, deu de cara com um intenso abraço e um carinhoso beijinho de uma mulher muito simpática:

— Olha só quem eu tenho o prazer de encontrar, que felicidade! Há quantos anos, menina! Nossa, você está tão bonita com esse cabelo curto. Me conta o que anda fazendo, tô louca saber tudo de você.

Marilia olhava com olhar investigativo para a calorosa mulher. De onde ela me conhece? Esse desconforto nunca tinha lhe acontecido antes. Já havia esquecido coisas como chaves, bolsa, nomes, mas nunca tinha se deparado com o fato de não se lembrar de alguém. Resolveu parecer natural:

— Comigo está tudo bem, querida. Na mesma. Fora os óculos que aumentaram de graduação. E riu de si mesma.

— É a idade, né amiga? Eu também uso lentes de três graus para perto. Mas uso óculos para longe. Um estorvo. Sempre perco os óculos, agora ando com um em cada cômodo da casa, um em cada bolsa, porque nunca me lembro onde os deixei.

Marilia ainda cavoucava na mente algum indício da amizade dela com aquela mulher. Pelo menos a falta de memória afetava também a tal mulher. Talvez se ela dissesse algo que a ajudasse recordar...

— Ah, você soube da Margarete Linhares? – Pergunta a desconhecida com ares de satisfação por ter se lembrado de um assunto comum.

Elas se olharam nesse instante, ambas com olhares indagadores.

— Margarete Linhares? E Marilia fazia cara de quem buscava na lembrança a tal Margarete.

— Uai, vai me dizer que não se lembra da Margô, ela era um pouco mais nova que a gente, aquela que roubou seu namorado um dia. Ah, isso a gente nunca esquece, mulher.

Taí, Marilia precisava entrar no jogo para saber da tal Margarete e pra descobrir quem era a mulher tão afável que falava com ela de maneira tão íntima:

— Ah, a Margô! Não, não sei o que houve com ela. O que aconteceu?

— Pois é, deu o maior golpe do baú de todos os tempos! Casou com Abreuzinho no ano passado. Lembra do Abreuzinho, né? Aquele empresário dono de várias fábricas e lojas virtuais, o brasileiro que comprou uma passagem para marte pagando milhões, deu em tudo quanto é jornal. Eu fui convidada pro casório. Ai, Ai, minha amiga, foi a maior festa que eu já fui na minha vida. A Margarete já é cinquentona nem esperava casar mais, e ele ainda nem tinha feito quarenta. Foi um escândalo, a família dele se recusou comparecer na cerimônia. Os jornais noticiaram que o pai dele dizia “essa é uma golpista”. Acho que descobriram que a Margô era uma aproveitadora, afinal esse Google, Facebook, contam tudinho. Mas, acabaram casando para o desespero da família Forner de Abreu. Só que com o tempo, o pai do Abreuzinho começou a aceitar a relação dos dois, e o inferno astral foi reduzindo. A Margô tomava um café comigo às vezes. Até que... há duas semanas o Abreuzinho foi encontrado morto, assassinado dentro da própria casa. Você não leu nos jornais, não?

E Marilia fazia que não com a cabeça, enquanto a mulher nem parava para saber a resposta.

— A Margarete é a maior suspeita, apesar de ter berrado “Não fui eu”, alegou que estava num retiro espiritual quando aconteceu. Ninguém acreditou nela. Imagine, matou para ficar com o dinheiro dele, o cara era filho único. Você seria capaz de imaginar que uma amiga nossa seria capaz de uma coisa dessas? Minha querida, ela planejou tudo, tenho certeza disso, a gente conhece aquela mente doentia.

De repente Marilia viu-se curiosa diante de fatos tão explícitos:

— O Abreuzinho morreu! Mas como foi que ela o matou?

— Deu em tudo que foi mídia. Tenho uma postagem do WhatsApp aqui onde aparece ele morto, quer ver? E foi abrindo o vídeo da reportagem na mansão. A vítima estava com o rosto coberto de sangue, e Marília não conseguiu reconhecer o falecido.

— Nossa! Por acaso tem uma foto da Margarete aí?

— Dela não tenho. Excluí o nome dela minha lista de Face, Whats e tudo mais. Não acho saudável manter vínculo com uma assassina.

— Mas, como concluíram que foi a Margô?

— Ainda estão investigando, mas tem um zumzumzum dizendo que ela pagou uma grana preta para um spa do interior colocar o nome dela na lista de hóspedes daquela semana. Dizem que ela esteve lá apenas no primeiro dia e no último. Mas, ela alega que foi para descansar e não fofocar com aquela mulherada atoa. Disse que ficou no quarto quase o tempo todo. Os funcionários confirmam. Não há como provar isso. O carro dela ficou lá durante toda a semana. Mas quase ninguém a viu. As câmeras registram a chegada dela no estacionamento e na recepção, e a saída 7 dias depois, só isso. Não existem outros registros no intervalo. Mas, a investigação corre solta, querida, e tem outros indícios de que ela é a culpada. Os investigadores disseram que foi um tiro certeiro, e quem atirou conhecia o corpo humano.

— Mas, a Margô conhece o corpo humano?

— Num lembra, não? Ela foi enfermeira quase médica. Deu uma canseira desde o ginásio colando da gente, mas acabou se dando bem na faculdade.

— Não lembrava.

— Minha amiga, foi a própria Margô que ligou para a polícia, estava toda chorosa. Disse que chegou de viagem, deu com o corpo de seu amado marido.

— Que coisa!

— Mas eu vou te contar em primeira mão duas coisas que eu sei, mas que a polícia ainda não sabe. Um dia em que fui ver um terreno pra comprar perto de Arujá, uma chacrinha pra passar fins de semana, e vi com meus próprios olhos, a Margô e o pai do Abreuzinhonum passeio sorrateiro de carro lá em Arujá. Pra lá de esquisito, não acha? O velhote tem mais de 70 mas ainda é enxutão. Fico pensando, a esposa deveria encostar o marido na parede, porque ela deve conhecer o marido safado que tem. Imagine, ele “passeando” com a nora!

Nesse instante Marilia teve vontade de ir embora, parecia que a tal mulher queria montar uma novela dramática daquelas que não acabam nunca. Já estava cansada de ficar ali em pé. Olhou para os lados e resolveu sentar numa mesinha do café mais perto, no que a mulher a acompanhou. Marilia, então, decidiu ficar para ouvi-la. Queria saber onde acabaria tudo aquilo, afinal não se lembrava de sua conhecida, nem das pessoas que ela mencionava. Marilia resolveu opinar:

— Talvez a esposa não queira a separação, talvez não queira perder nem um centavo do dinheiro que juntaram com o casamento. Se ela se separar do marido, a Margô vai, com certeza, abocanhar o velho.

Viu a cara da mulher se encher de uma luz esclarecedora:

— É isso mesmo! Você é boa nisso, hein! Tá mal com ele, vai ficar pior sem ele. Mas, agora, se a Margô for presa vai ser um alívio para ela.

— Acredito que sim. - Marilia pediu um cappuccino, e a mulher pediu um expresso curto.

— Mas você disse que me contaria duas coisas que a polícia não sabe, qual é a segunda coisa?

— Ah sim. Logo depois do casamento da Margarete, nós duas fomos tomar um café, e ela revelou que o Abreuzinho não é filho do Dr Janio Forner de Abreu. Disse que a mãe dele teve um caso com o motorista particular da família, e o Abreuzinho seria filho desse serviçal. Mas o Dr Janio o reconheceu como filho para evitar um escândalo naquela época. E desde que o filho soube do que a mãe fez, ele se tornou rebelde, talvez por essa razão tenha se casado com a “golpista”, para afrontar o pai e a mãe.

Marilia sabia que a história ainda andaria por mais dois ou três cafés.

Ambas se entreolhavam, um exame que deveria ter acontecido antes, mas que veio somente agora nesse hiato da conversa.

E a mulher disse:

— Nossa, Sofia, estou te achando tão estranha. Você já sabia da Margô e do pai do Abreuzinho?

— Deve estar me achando estranha porque sou estranha mesmo. Meu nome não é Sofia.

Marilia experimentou um ar de vitória ao fazer tal revelação. A mulher mostrou-se confusa:

— Como assim?

E Marilia explicou que não a reconhecia, que não conhecia a Margarete Linhares e muito o Abreuzinho. Mas que ouviu toda a história porque é um caso interessante.

A mulher se levantou mostrando-se ofendida, ou envergonhada, e já ia embora quando Marilia pediu que se sentasse, pois, o café acabara de chegar à mesa:

— Não tem nenhum problema que eu não conheça você nem as pessoas que você citou, podemos nos conhecer agora. Meu nome é Marilia Brandini, e o seu?

E a mulher sorriu, afinal a história ainda tinha acabado mesmo...